Monteiro Lobato e sua luta visceral pelo petróleo brasileiro: o que aprendemos com ele?
Em cartas cheias de planos e críticas, escritor detalhou interesse na exploração do “ouro negro”
Kátia Chiaradia
Monteiro Lobato foi um nome muito falado em 2019. Tanto por sua obra entrar em domínio público neste ano quanto pelo aniversário de 80 anos da descoberta do primeiro poço de petróleo brasileiro, no barro de Lobato, em Salvador (Bahia). Apesar do nome do bairro não ter a ver com o criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo, o destino ainda sim pode ser sábio, uma vez que o autor foi um dos maiores nomes a lutar pelo Petróleo de solo brasileiro.
Essa luta é explicitada, em sua maioria, por meio de cartas entre ele e o engenheiro de perfuração Charles Frankie, que constam no Cedae (Centro de Documentação Alexandre Eulalio), da Unicamp. O conteúdo das mensagens não era outro: críticas contundentes à legislação que acabara de entrar em vigor e ao “atraso brasileiro”. Destacava nas cartas a história das primeiras companhias petrolíferas no país. Em outras mensagens, entraram em discussão questões acerca da parceria na tradução e na redação do prefácio de “A Luta pelo Petróleo” (1935), de Essad Bey. Mais à frente, esse conjunto de cartas também teria papel definitivo na composição de seu best-seller “O Escândalo do Petróleo” (1936) e no infantil “O Poço do Visconde” (1937).
Entre 1934 e 1936, Lobato empreendeu diversas missões em busca de petróleo, todas frustradas. Seguia criticando a legislação e chegou a apelar para autoridades, na tentativa de alterar o Código de Minas, para que fosse “o mais liberal possível”. Na visão dele, havia pelo menos dois grupos estrangeiros interessados no petróleo brasileiro, mencionados em muitas das cartas: os norte-americanos —que teriam “interesses ocultos”, representados por Vitor Oppenheim e pela Standard Oil—, e os alemães, representados por Frankie e pela empresa Piepmeyer, entre outros.
Supondo que poderia levar o Brasil a um tipo de desenvolvimento semelhante ao observado nos EUA e ainda se firmar como empresário e empreendedor, Lobato iniciou a Campanha do Petróleo.
Em 1930, o mundo ainda sofria consequências da Priemira Guerra Mundial, junto dos efeitos do colapso da Bolsa de Nova York. O Brasil, neste contexto, via sua demanda pelo petróleo crescer exponencialmente. Eram 38 mil barris diários comparados aos 2 milhões por dia atuais. Nesse período, o governo federal passou a legislar sobre a exploração das riquezas minerais em nome da União, buscando fortelecer o estado. Assim, foi fundada a Companhia Brasileira de Petróleo, associada à anglo-holandesa Royal Dutch & Shell, referência mundial na extração, na época com a maioria de técnicos e maquinário americanos.
Assim, entre 1932 e 1935, outras duas companhias passaram a atuar no Brasil: a Companhia Petróleo Nacional, incorporada por Monteiro Lobato, Lino Moreira e Edson de Carvalho, que funcionava legalmente em Riacho Doce, Alagoas; e a Companhia Petróleos do Brasil, presidida por Lobato, instalada legalmente no campo de Araquá, hoje Águas de São Pedro, no interior de São Paulo. Ainda assim, não se extraía petróleo do subsolo brasileiro. Ao menos não oficialmente.
Em 1933, Victor Oppenheim foi contratado para operar pesquisas em solo brasileiro. Lobato, então, começou a criticar publicamente a associação entre o governo brasileiro e a estrutura empresarial dos EUA. Em paralelo, Juarez Távora, na pasta da Agricultura, solicitava oficialmente ao Itamaraty uma organização do exterior para estudos geofísicos no Brasil, passando, em seguida, a comandar as iniciativas de pesquisa.
Pouco depois disso, Victor Oppenheim começou a divulgar os primeiros resultados de sua pesquisa. Em boletim ao DNPM, afirmava: “A região de S. Pedro, no estado de S. Paulo [poço São João do Araquá, cuja exploração se dava pela Companhia Petróleos do Brasil, de Monteiro Lobato] é, do ponto de vista geológico-estratigráfico, francamente negativa para futuras pesquisas de petróleo nessa região”.
Devido ao novo Código de Minas e também á constituição de 1934, as jazidas eram consideradas como parte da união, além do estabelecimento de “a nacionalização das jazidas e minas julgadas básicas ou essenciais à defesa econômica ou militar do país” e “a exigência de nacionalidade brasileira ou de constituição de uma empresa nacional para atuar no setor de mineração” —medidas nitidamente nacionalistas.
Lobato, como já dito, combateria extensivamente, como escritor e empresário, o Código de Minas. Irritado em especial com a exigência de nacionalidade brasileira para a pesquisa e para a lavra das jazidas minerais, apelidou-o de “lei cipó”. A legislação, porém, ao definir empresas nacionais como “sociedades organizadas no Brasil”, sem restrição de nacionalidade dos acionistas, possibilitava que companhias estrangeiras fossem até proprietárias de empresas nacionais.
Usando dessa brecha, Lobato organizou no Brasil sociedades com capital estrangeiro, como a Amep (Aliança Mineiração e Petróleos), visando impedir que o petróleo brasileiro ficasse exclusivamente com o truste americano Standard Oil-Royal Duth sem concorrência mínima.
Lobato julgava necessária a diferenciação entre acordo e entreguismo. Ele cobrava que Getúlio Vargas priorizasse os interesses do Estado brasileiro, inclusive em longo prazo. O escritor era um cidadão inconformado que não desistia de exercer seus direitos políticos, um intelectual apaixonado que caminhava rumo a seu propósito, atuando nas mais diversas áreas: alimentava debates na imprensa, discursava acerca da importância dos empreendimentos nacionais, realizava prospecção de petróleo, escrevia artigos e livros sobre o tema e dedicava-se visceralmente aos “bastidores do petróleo”, pela intensa troca de cartas, buscando os mais diversos arranjos políticos e comerciais.
Mais que um escritor, Monteiro Lobato era um intelectual apaixonado e devoto do poder da literatura e dos livros. Cabe aqui uma reflexão sobre o essencial papel que o verdadeiro pensador desempenha no processo de desenvolvimento de uma população. O intelectual que fala com todos é essencial em tempos obscuros.
Em 1937, com uma nova Constituição, as regras para a pesquisa e a lavra das jazidas minerais ficaram ainda mais enrijecidas em relação à nacionalidade das empresas. Fechou-se a brecha da lei de 1934, estabelecendo-se claramente que apenas brasileiros ou empresas constituídas no Brasil, com sócios brasileiros, poderiam participar das atividades mineradoras.
Meses à frente, porém, o decreto-lei 366, de 1938, incluiu no Código de Minas um capítulo específico, declarando que “todas as jazidas de petróleo e gases naturais acaso existentes no território nacional pertencem aos Estados ou à União, a título de domínio privado imprescritível”. Tratava-se do primeiro documento federal abordando especificamente o petróleo que, contudo, segundo o governo, ainda “não existia”.
Mas em 1939, há 83 anos, num rompante de deboche aos laudos do DNPM, o petróleo brotou no bairro de Lobato, em Salvador, na Bahia. No ano seguinte, o novo Código de Minas manteve o dispositivo de 1934. A incansável atuação na Campanha do Petróleo colocou Monteiro Lobato em choque com o governo de Getúlio Vargas, o que levou à prisão do escritor de janeiro a junho de 1941.
Ironicamente, enquanto Lobato estava preso, foi publicada a primeira legislação específica para o petróleo, o decreto-lei 3.236, de 7 de maio de 1941. Em 1946, nova Constituição restabelecia a brecha para que estrangeiros pudessem atuar como sócios em empresas de mineração, nos moldes do que vigorava em 1934. No entanto, o Código de Minas de 1940 não foi modificado, mantendo a restrição a estrangeiros. O artigo que continha tal limitação foi somente revogado pelo Senado em 1964, após acórdão do STF, liberando empresas estrangeiras como acionistas de empresas de mineração no Brasil.
O tempo da vida, contudo, nem sempre é o tempo da política. Na madrugada de 4 de julho de 1948, vítima de um derrame, Monteiro Lobato morreu em São Paulo, sob comoção de todo o país.
Quase duas décadas mais tarde, em 1967, foi promulgado o Código de Minas que vigora até hoje, com algumas modificações implementadas por meio de leis específicas. Ele oficializou a abertura das atividades de mineração no Brasil a empresas estrangeiras, o que já vigorava desde 1964.
Em 2015, a legislação de lavra voltou a ganhar notoriedade no cenário brasileiro. Um crime ambiental comprometeu para sempre o distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, Minas Gerais: a barragem de rejeitos da mineradora Samarco (que tem como sócias a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP Billiton) rompeu, matando o rio Doce, soterrando famílias e animais, levando doenças e impregnando de barro os olhos de um país inteiro, que assistia incrédulo à tragédia.
Vieram à baila, desde então, discussões sobre a responsabilidade das mineradoras na lavra das jazidas minerais. Em 2017, por meio da medida provisória 790, o governo federal tentou introduzir modificações ao Código de Minas, como a inclusão de “responsabilidade do minerador pela recuperação ambiental das áreas impactadas” e a obrigação do titular da concessão de “observar o disposto na Política Nacional de Segurança de Barragens”.
Após meses de discussão no Congresso, a MP recebeu 250 emendas e se transformou em um projeto de lei de conversão (PLV 39), que, depois de várias sessões sem ser apreciado, foi retirado de pauta, fazendo com que a MP caducasse. Mesmo após a tragédia, a burocracia tornou inerte o primeiro movimento positivo, em anos, na legislação de lavra.
Na esteira dos fatos, no final de 2018, o decreto 9.406 foi publicado, regulamentando a lei do Código de Minas de 1967. Parte do decreto é uma reedição de artigos da MP 790, já que o PLV 39 ainda não foi apreciado pelo Congresso Nacional. Tudo foi parar em alguma gaveta.
Desde então, ainda tivemos a catástrofe de Brumadinho, com milhares de vidas humanas e não humanas interrompidas ou impactadas pelo mar de rejeitos e descaso da mineradora Vale.
A sensação de entreguismo do Brasil também marca nossos dias. Estamos inertes? Estamos já nos esquecendo? Quase um século se passou desde que Monteiro Lobato usou de todas as suas armas para se opor à burocracia institucional que opera na máquina política brasileira. De lá para cá, pouco ou nada mudou: medidas provisórias caducam, projetos de lei são engavetados e boa parte dos governantes ainda ignoram os assuntos sobre os quais legislam.
O texto, a luta, a persistência e a indignação de Monteiro Lobato escaparam aos clichês de sua época, e a originalidade de sua obra ainda hoje continua a nos falar. É este também o papel da literatura: ao nos envolver em um mundo que não parece nossa realidade, leva-nos a reavaliar o mundo em que vivemos.
Talvez nos falte essa indignação visceral.
Kátia Chiaradia, doutora em teoria e história literária pela Unicamp.
Este texto foi adaptado do artigo “Em briga por petróleo, Monteiro Lobato vê burrada imensa no país”, publicado original e integralmente no caderno de literatura “Ilustríssima”, da Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/03/em-briga-por-petroleo-monteiro-lobato-ve-burrada-imensa-no-pais.shtml