O que significa adaptar uma obra?
(Kátia Chiaradia)
Quando soube que a bisneta de Monteiro Lobato estaria adaptando sua obra, estranhei. Estranhei porque eu já era pesquisadora de Lobato há mais de 10 anos e nunca havia imaginado que isso seria possível. Os herdeiros de Monteiro Lobato sempre foram muito receptivos às pesquisas acadêmicas, e prova disso é terem doado ao CEDAE da Unicamp, toda a biblioteca do autor, além de uma enormidade de outros documentos de pesquisa: cartas, fotografias, aquarelas, bilhetinhos e até um caderno de receitas de Dona Purezinha. E nesse tempo todo, Cleo Monteiro Lobato sempre foi uma pessoa das coxias e não do palco, que ficava reservado para seus pais e, evidentemente, seu bisavô.
Meu segundo estranhamento se misturava à sensação de incômodo que eu sabia exatamente de onde vinha: sou pesquisadora, e mexer em um texto literário, um clássico, não é algo bem-visto pela perspectiva dos estudos literários. Isso porque todo texto fala de seu tempo, do lugar onde foi escrito, das pessoas que viveram à época de sua concepção e daquelas que primeiramente o leram. Assim, ainda que os motivos de Cleo para adaptar a obra de Lobato me parecessem louváveis (na época, eu achava que ela queria retirar do texto expressões hoje entendidas como racistas, mas, mais à frente, fui entender melhor1) a ação em si ainda me confundia.
Porém, como pesquisadora, meu papel é buscar entender uma situação-problema por diversos prismas. Fazemos pesquisa para que nossos estudos alcancem a sociedade e possam tornar o mundo um lugar melhor e mais democrático, sobretudo quando é a universidade pública que nos impulsiona.
“O mesmo acontece com a literatura”, pensei. A literatura deve alcançar seus leitores, sem os quais ela sequer existe.
Quero dizer, com isso, que um livro infantil que não alcança as crianças é um livro que não tem razão de existir. Monteiro Lobato escreveu livros para as crianças e sobre elas. Ele não escreveu as histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo para pesquisadores, mas sim para que crianças pudessem morar nelas. E, como pesquisadora, meu papel é olhar para todo esse movimento de maneira investigativa: quanto de reconhecimento e identificação, seja consigo, com seu espaço ou com seu tempo, este livro pode proporcionar aos leitores? Quanto este livro facilitará que eles ampliem suas relações com o mundo? E quanto as afastará dele? Se a balança pende para causar dor em uma criança, isso precisa ser revisto.
A escola é o mundo de muitas crianças, por isso, não é aceitável que qualquer uma delas sofra em sala de aula, justamente no espaço em que ela deveria se fortalecer. Então, se a adaptação de que falamos aqui, cujo foco está em atualizar para hoje a mesma pujança que se lia na Tia Nastácia de um século atrás, essa adaptação é bem-vinda porque, repito, as obras do Sítio do Pica-Pau Amarelo foram escritas para as crianças, e não para nós, adultos. No Sítio, Tia Nastácia é a geradora da vida e a saciadora das fomes. De todas. Ela é quem abraça, acalma e faz rir, e é imprescindível que essa percepção da centralidade de Tia Nastácia alcance também as gerações de hoje. Se algumas frases sobre ela envelheceram mal e hoje são consideradas racistas, que sejam adaptadas para que o retrato dessa mulher doce, forte e inspiradora continue o mesmo. O texto mudou justamente para que se preserve a personagem.
Por fim, é claro que muitos de nós também querem “morar nelas”, nas historias, mas é preciso nos lembrarmos que “a casa” é pensada para elas, as crianças, as moradoras originais e por direito.