A influência da mitologia grega na obra de Monteiro Lobato

A influência da mitologia grega na obra de Monteiro Lobato

Se você é leitor da obra de Monteiro Lobato, certamente já leu alguns de seus livros onde havia uma quantidade expressiva de referências à Grécia Antiga como em O Pica-Pau Amarelo, ou até aventuras inteiras que se passam na Grécia, como O Minotauro, Os Doze Trabalhos de Hércules e História do Mundo para Crianças. Mas de onde vem essa admiração pela cultura Helênica nas obras de Lobato? O que o escritor leu e de que maneira essas leituras influenciaram suas obras? Porque Lobato colocou tantas vezes em seus livros essa conexão do universo lobatiano com a mitologia Grega?

A correspondência entre Lobato e seu amigo e também escritor Godofredo Rangel, ao longo de quarenta anos, reunida no livro intitulado A Barca de Gleyre (Companhia Editora Nacional,1944), nos revela que Lobato lia traduções de autores como Homero, Horácio, Hesíodo, Aristófanes, Ésquilo, Eurípides, Platão, Aristóteles e Heródoto e que o autor expressava grande admiração não apenas pela literatura, mas também pela cultura grega em especial. Através de suas histórias, ele expressou sua admiração sobre os antigos gregos, baseadas na ideologia do chamado “Milagre Grego”, que enxergava as grandes realizações da Grécia Antiga como um evento espontâneo, inédito e único, resultado de um povo especial; tese, esta, prevalente nos meios acadêmicos e letrados do final do século XIX até meados do século XX, mas que hoje foi desbancada pela historiografia. Lobato leu e foi influenciado por autores onde essa concepção pode ser encontrada, como as obras do poeta e intelectual francês Leconte de Lisle; do escritor, filósofo, teólogo, filólogo e historiador francês Ernest Renan; do escritor francês Anatole France; além de alguns livros do filósofo, historiador e escritor estadunidense William James Durant, que Lobato inclusive, revisou a tradução e publicou pela Companhia Editora Nacional, da qual era proprietário na época.

Lobato também era seguidor do pensamento positivista – corrente teórica criada pelo filósofo francês Auguste Comte que defendia a ideia de que o conhecimento científico seria a única forma de conhecimento verdadeiro e que tem a Matemática, a Física, a Astronomia, a Química, a Biologia e também a Sociologia como modelos científicos de conhecimento e progresso. Essa visão positivista da importância da ciência e da educação influenciou Lobato e ia de encontro ao seu desejo de transformar o Brasil em país próspero, com um povo letrado. Ele acreditava no poder de transformação do ser humano pela leitura e pela educação e simultaneamente idealista e realista, enxergou no mercado literário, um grande potencial para a transformação positiva do nosso país. Afinal "um país se constrói com homens e livros”.

A primeira menção de Lobato sobre a Grécia Antiga, pode ser encontrada no livro História do Mundo para as Crianças, de 1933, uma adaptação da Child’s History of the World, de V. M. Hillyer, que marcou a primeira tentativa de Lobato na publicação de livros paradidáticos, com o objetivo de tornar os conteúdos escolares mais agradáveis e divertidos. Neste livro Dona Benta conta de maneira cronológica desde o surgimento do sistema solar (um espirro), do nosso planeta e da vida na Terra, a evolução do homem, a Idade da Pedra, as primeiras civilizações e assim por diante, passando pelos Grécia Antiga, Tróia, os Romanos até chegar aos últimos dias da Segunda Guerra Mundial. Esse é um dos livros infantis mais longos de Lobato e também um dos mais perseguidos pelo Estado Novo de Getúlio Vargas e pela Igreja Católica, sendo denunciado pelo Padre Sales Brasil, na época, como “comunismo para crianças”.

Poucos anos depois, em 1939, no livro O Pica-Pau Amarelo, os personagens do “Mundo da Fábula”, entediados com a monótona rotina dos antigos livros onde viviam, decidem se mudar para o sítio de Dona Benta, um lugar incrível, na esperança de terem maior liberdade para viverem novas histórias e aventuras. Lobato mistura, neste livro, personagens da nossa mitologia com os personagens do sítio e os da mitologia grega novamente. Vemos personagens como a Medusa, o valente Perseu, o Rei Midas, os centauros, os faunos, as sereias, as ninfas (figuras mitológicas, que representam elementos da natureza e são responsáveis por levar alegria e felicidade às pessoas), as náiades (espécie de ninfas das águas doces, que habitam rios e lagos), além do herói Belerofonte, Pégaso (filho da Medusa com Poseidon), a Quimera (figura mística caracterizada por uma aparência híbrida de dois ou mais animais, que tem a capacidade de lançar fogo pelas narinas), entre outros personagens participando das aventuras no sitio.  A convivência entre personagens de origens tão diferentes acaba criando conflitos e situações inusitadas e durante a narrativa, acontece um acidente com o rompimento da barragem que sustentava o mar da história de Peter Pan, matando o marido de Branca de Neve. Para contornar a situação, a turminha do Sítio articula um novo casamento para Branca de Neve com o Príncipe Codadad, das Mil e uma noites.  A fim de fazer com que os dois se apaixonem, Emília faz uso de algumas flechas do Cupido. Tudo parece caminhar para um final feliz, até que durante a festa de casamento, onde os mitos gregos são a maioria dos convidados, acontece uma invasão de monstros, identificados apenas como “monstros fabulosos”, de origem grega, Tia Nastácia acaba raptada pelo Minotauro! Essa é a primeira obra de Monteiro Lobato, onde se nota a forte presença de mitos gregos, dentro da própria história, antecipando os temas das próximas aventuras, já que o seu desfecho fornece o gancho e o pretexto para as viagens do grupo do Sítio à Grécia Antiga que viriam a seguir.

Em O Minotauro, publicado no mesmo ano de 1939, temos a continuação da aventura iniciada em O Picapau Amarelo, onde Tia Nastácia desaparece durante o casamento da Branca de Neve. Agora, Dona Benta, Pedrinho, Emília, Narizinho e Visconde vão procurar Tia Nastácia na Grécia Antiga. O texto, quase todo em formato de diálogo, tem Dona Benta trazendo informações sobre a história da Grécia e as crianças interagindo com o que a avó conta, acrescentando outras informações e comparando a realidade do passado com a realidade de 1930, época que o livro foi escrito. A caminho da Grécia, os personagens discutem a influência Helênica na nossa língua, dão exemplos de retórica e falam da influência grega em nossa arquitetura. Quando chegam na Grécia, eles discutem as roupas, comparando com o que se vestia no final da década de 1930, além de traçar outros paralelos ligados à arte e a cultura das duas épocas. Dona Benta, como uma esfuziante viajante do tempo, comete o erro de revelar a Péricles (célebre governante de Atenas) e a Fídias (um dos principais escultores gregos), sobre o futuro. Pedrinho, Emília e Narizinho não ficam atrás, contam a Fídias sobre cinema, cigarros, carros e a fórmula da água, deixando-o atordoado, sem entender absolutamente nada. Por sorte, saber sobre o futuro, nessa história, não gera consequências porque este não era o propósito, mas certamente pensar sobre esse impacto seria algo curioso para muitos de nós hoje em dia. Voltando à história, Dona Benta e Narizinho decidem ficar na Grécia governada por Péricles, onde participam de um jantar em seu palácio e conhecem várias celebridades históricas, entre elas o filósofo ateniense, Sócrates. Já Emília, Pedrinho e Visconde vão em busca de Tia Nastácia, chegando então na Idade Heróica da Grécia, repleta de mitologia, a partir do capítulo 10. Os personagens de Lobato vão ao Olimpo em busca de Hercules e depois de presenciarem alguns de seus feitos, se deparam com várias figuras mitológicas, até encontrarem Tia Nastácia no labirinto do Minotauro. Para evitar um spoiler para quem ainda não leu este livro, fica aqui um convite para que leiam, a fim de saber por exemplo, como Tia Nastácia é salva e como os personagens de Lobato saem do labirinto, e voltam para casa.

 Em Os Doze Trabalhos de Hércules, de 1944, Monteiro Lobato faz um novo e fascinante mergulho na mitologia grega sob o olhar brasileiríssimo da turminha do Sítio do Pica-Pau Amarelo, resultando em um dos clássicos da literatura infantojuvenil brasileira, que há quase oitenta anos segue encantando gerações de crianças. Nessa história, Pedrinho, Emília e o Visconde de Sabugosa recorrem ao pó de pirlimpimpim para recuar mais de 2 mil anos no tempo, a fim de ajudar Hércules na primeira de suas doze missões impossíveis. Uma a uma, as tarefas do semideus vão sendo cumpridas graças ao apoio intelectual dos personagens lobatianos, uma vez que o herói grego tem força e valentia, mas carece de certa esperteza. Além de ajudar o herói a superar todos os desafios, os personagens do Sítio fazem um passeio pelos principais e mais belos trechos da mitologia grega, utilizando uma linguagem simples e apropriada para crianças, apresentando esse universo com uma riqueza de detalhes raramente encontrada em outros livros, mesmo para adultos. Para essa história, Lobato criou dois personagens: Meioameio, uma espécie de ‘potrinho’ de centauro que se torna amigo de Pedrinho e Minervino, mensageiro de Palas Atena (deusa da sabedoria, da guerra e da justiça, protetora da cidade de Atenas), que volta e meia surge para auxiliar os protagonistas ou para discutir sobe mitologia com o Visconde de Sabugosa. Curioso é que no final do segundo volume da história, Emília pergunta o verdadeiro nome de Minervino, que afirma ser Belerofonte, um herói da mitologia grega, considerado um semideus, por ser filho de Poseidon (um dos deuses gregos) com uma humana.

É importante notar que Lobato não fez apenas uma tradução ou mera adaptação das histórias helênicas. Na verdade ele cria uma obra nova, adicionando os personagens do Sitio alem de outros novos, mantendo os elementos mais importantes da narrativa mítica greco-romana, mas incluindo aventuras e acontecimentos completamente distintos, introduzindo elementos engraçados e adequando os fatos narrados às nossas próprias características através do seu imaginário. De extrema importância é notar o convicção de Lobato de que é através do aprendizado, da educação, da ética que podemos vencer os obstáculos. E, com a ajuda da turma do Sitio, Lobato nos dá o novo herói, Lobatiano que é forte mas também sente compaixão, tem ética e aprende o que é certo e errado. O novo herói que tem força e inteligência. Ele que sempre acreditou no poder transformador dos livros, entendeu que os mitos gregos sobreviveram à transposição da oralidade para a escrita porque trabalhavam com imagens e situações presentes no imaginário de todos nós. E o resultado é simples: crianças e adultos, quem não gosta ler ou ouvir uma boa história?

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REFERÊNCIAS:

https://revistas.ufpr.br/letras/article/view/14995

https://dspace.mackenzie.br/handle/10899/25446

https://periodicos.ufms.br/index.php/ENAPHEM/article/download/15092/10338/

https://www.researchgate.net/publication/287730299_Monteiro_Lobato_e_a_Mitologia_Grega

https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/31/31131/tde-20072022-151646/pt-br.php

https://www.blogdaletrinhas.com.br/conteudos/visualizar/A-Grecia-pelo-olhar-de-Monteiro-Lobato

https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/18373/15162

https://revistas.ufpr.br/letras/article/viewFile/14995/13469

https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/ECAP-7DXJL5/1/disserta__o___vitor_amaro_lacerda.pdf