A cartinha do príncipe

Patrícia Aparecida Beraldo Romano

Sítio do Picapau Amarelo, ano de 2020. Caro senhor Monteiro Lobato,

Estou eu aqui nesse recanto tão tranquilo do Sítio onde cresceram todas as suas personagens infantis. Talvez eu seja a mais antiga delas, afinal, enquanto elas eram crianças, eu já era um peixinho adulto e príncipe, sim senhor, com longas e brilhantes barbatanas. O ribeirão que corre no fundo do pomar é o meu ainda hoje meu refúgio, cem anos depois do momento em que o senhor começou a contar a minha história e a de suas personagens infantis. Aqui, nas águas muito apressadinhas e mexeriqueiras, ainda correm a nadar– por entre as negras pedras de limo, que Lúcia, a nossa Narizinho, chamava de “as tias Nastácias do rio”– os meus parentes grandes e miúdos, a se divertirem com as águas cristalinas e borbulhantes da pequena queda d’água que desemboca no riacho. O senhor já não mora mais neste lugar mágico. Foi-se embora há muito tempo, mas deixou nossa imagem consagrada entre as crianças que, ainda hoje, querem bailar comigo, o Príncipe Escamado, ou esperar por um vestido furta-cor de dona Aranha, a costureira das fadas!

O senhor deve estar se perguntando o porquê dessa minha cartinha, depois de tantos anos, não é mesmo? Pois me bateu uma enorme saudade da turminha do Sítio e dos leitores dela! Veja só o que me aconteceu há pouco tempo. Estava eu aqui pela beira do riacho, numa tarde tranquila de verão quando vi uma mãozinha se aproximar de mim. Eu, muito sorrateiro, já fui me apegando àqueles dedinhos pequeninos e matreiros e me deixei levar. Pois qual não foi minha surpresa: fui colocado em algo plástico, com muito pouca água e transportado para dentro de sua antiga residência, a casa grande, que hoje não é mais assim conhecida. Fiquei assustado, confesso. Achei que tivesse chegado o meu fim. Mas que nada, senhor Lobato, fui realocado para um espaço muito bonito, com pedrinhas coloridas, muito mais furta-cores do que as do fundo do riacho e dei de cara com uma série de outros parentes meus: uns enormes, outros minúsculos; uns coloridos como eu, outros de uma cor apenas. Uma alegria danada reencontrar amigos que eu pensava estivessem mortos há muito tempo.

Passei a observar o espaço ao meu redor. Sabe o que mais me impressionava? O cheiro bom que penetrava na água todo final de semana. Cheiro de comida, e comida caseira, das boas, igualzinha à de Tia Nastácia, quando todos nós fomos visitar o Sítio!

Uma delícia!!! A única tristeza é que não foi ela quem eu encontrei por lá, mas sim uma senhora a quem uma moça chamava de “mamãe”! E a quem crianças, inclusive a que me pegou no ribeirão, chamavam de “vovó”. Imediatamente imaginei se tratar de Dona Benta, um amor de avó. Não era ela também. Fiquei um pouco triste, pois já queria conversar com a boa senhora… Enfim, a prosa não foi possível, mas essa boa velhinha era a responsável pelo delicioso aroma que perfumava minha nova casa, o aquário.

De lá eu também via as pessoas que entravam e saíam da antiga casa grande. Ao entrarem, escutavam uma apresentação sobre o lugar, sobre o senhor e sua família, inclusive sobre o visconde, seu avô, que mandara construir tal casa. Sim, senhor Lobato, o visconde de Tremembé e a viscondessa, sua esposa. Havia as curiosidades sobre as janelas, cujos vidros, ou cristais (nunca consegui ouvir direito) teriam vindo da França! Nossa! Como haviam chegado até ali era o que todos queriam saber! Nem estradas existiam na época. E também desejavam descobrir se havia mobília ainda que pertencera ao senhor e sua família. Ao ouvirem um “sim,” ficavam encantadas, em especial com a escrivaninha. O almoço, como se chamava a comilança que se seguia às visitas, vinha na sequência. Tinha comida de todo tipo, cujos nomes eu ia anotando e descrevendo, para não esquecer e para aprender, pois Narizinho sempre dizia que eu era meio difícil de aprender.

Pois voltemos à aventura do Príncipe Escamado, em antigas terras da casa grande do senhor Lobato. Eu me aventurei a sair do aquário e me lembrei de que trazia no bolso uma das pílulas do Dr. Caramujo. Sim, senhor Lobato, o mesmo que deu a pílula da falinha à Emília. O Dr. Caramujo era um danado de esperto e conseguiu reinventar a fórmula enterrada com o antigo besouro boticário que as inventara. E olha, estou para dizer que essas são ainda mais eficientes! Bem, bastou engolir uma e… zás, deu certo, saí do aquário, já meio homem, meio peixe, e me dirigi à boa senhora para me apresentar. Ela, como eu esperava, levou um susto, mas se deixou seduzir por meu charme e gentileza.

A vovó me achou lindo no meu terno furta-cor e logo me ofereceu suas guloseimas. Enquanto me deliciava com elas, tentei explicar quem eu era, mas creio que, embora moradora da sua antiga casa, ela não era afeita à leitura das suas obras. Uma pena. Contei-lhe sobre minhas intenções: ser apresentado como o Príncipe Escamado a todas as visitas da casa. Imagine o sucesso, eu disse! Senhor Lobato, esse foi meu erro, pois a senhora achou que eu era um mentiroso, não conseguiu perceber a magia que permeava a minha existência e invadia a realidade dela. “Um peixe, e ainda

por cima, príncipe”? Foi demais para a senhora das comidas. Ela foi se assustando comigo, quando lhe mostrei minhas barbatanas, escondidas, sobre o blazer, e minha cauda, amarrada e presa à calça. E… de repente… Puf! Caiu, esborrachada no chão.

Os homens que ali trabalhavam a acudiram, mas acharam que eu era um ser perigoso, saíram correndo atrás de mim. Eu segurei fortemente minha cauda de peixe e zás, atravessei o pasto das vacas, dei de cara com uma Mocha, mas não me assustei como no passado. Passei correndo pela porteira do pomar e desejava apenas ouvir Tia Nastácia me chamando pra ver se todo aquele alvoroço desaparecia. Enfim, tive de pular, ainda meio homem, no riacho, e lá o feitiço da pílula desapareceu. Afundei nas águas tranquilas do ribeirão do Sítio, senhor Lobato, para de lá nunca mais sair.

E é daqui, desse espaço mágico, que lhe escrevo, na esperança de que seus textos continuem a ser publicados, lidos e relidos, pois só assim continuaremos vivos e amados por todos, crianças, jovens e adultos, que ainda acreditam na magia de uma pílula falante ou no pó do Pirlimpimpim ou ainda no fechar dos olhos e deixar-se levar simplesmente pelo poder da imaginação.
Saudações, senhor Lobato, do Reino das Águas Claras.
Príncipe Escamado

Tia Nastácia; Figura relevante na divulgação da rica cultura popular brasileira

O encantamento provocado pelos personagens principais criados por Monteiro Lobato, nas histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo, atravessa gerações e desperta a nossa curiosidade para conhecer melhor as suas origens e as características de suas próprias personalidades.

Neste texto nossa personagem em destaque é Tia Nastácia, a melhor amiga de Dona Benta, que foi escrava quando jovem e depois de liberta se tornou parte da família do Sítio mais famoso do mundo!

Dona de riquíssima sabedoria popular, apesar de quase nenhum estudo, Nastácia tem o dom da bondade, sendo a cuidadora de Lúcia, a Narizinho, desde pequena e criadora da boneca de pano Emília e do sábio Visconde de Sabugosa, um boneco feito a partir de um sabugo de milho.

Mesmo responsável pelos afazeres da casa, ao contrário do que campanhas anti-Lobato tentam propagar, ela é sempre tratada com muito respeito por todos e em nenhum momento é menosprezada pelo autor. Afinal, não há nenhuma vergonha em se fazer trabalho doméstico como todos sabemos. 

Lobato reserva à Tia Nastácia uma posição privilegiada em comparação a figura do negro perante a sociedade daquela época, visto que sua personagem opina sobre os mais variados assuntos, ajudando na educação das crianças, dividindo os afazeres da casa com a amiga Dona Benta, figurando inclusive como sua confidente, o que era raríssimo de acontecer naquele tempo. Mesmo mantendo o costume em chamar Dona Benta de sinhá, assim como era costume antigamente, claramente no Sítio não há dono, nem patrão, e a relação entre as duas é baseada numa forte amizade, ajuda mútua, trocas de receitas e confidências.

O próprio Monteiro Lobato nos conta ainda em vida, durante uma entrevista ao jornalista Silveira Peixoto, que a personagem de seus livros foi inspirada em uma mulher chamada Anastácia, uma negra alta, magra da cidade de Areias que era casada com Esaú. Ambos foram contratados e vieram trabalhar na Fazenda São José do Buquira. Ela como cozinheira e babá de Guilherme (3º filho de Lobato) e ele como ajudante da fazenda. Foto de ambos estão no álbum de família de posse de D.Joyce Lobato Campos. D. Joyce também nos conta que houveram diversas “Nastácias” na família. D. Joyce conheceu Benedita Rodrigues, filha de Gabriela. Gabriela trabalhou na casa de Purezinha por muitos anos até falecer e Purezinha ajudou a criar a filha de Gabriela, Benedita, que cresceu junto com os filhos de Lobato, ficando muito amiga da filha mais velha, Martha. Mais tarde, quando Martha casou, Benedita foi trabalhar na casa de Martha ajudando a criar Joyce, neta de Lobato. A mesma Benedita (após a morte de Lobato) foi chamada para interpretar a 1a Tia Nastácia da TV Tupi durante 9 anos além de ter feito o mesmo papel no filme “O Saci”.

Com seu ar de brasilidade, Tia Nastácia é uma personagem retratada com todo o respeito merecido, que exerce um papel relevante e ganha até um livro com seu nome; “Histórias de Tia Nastácia”, que começa com a personagem explicando o que é folclore para as crianças e contando histórias da cultura brasileira e suas lendas. Na concepção do escritor, ela é a responsável por nos apresentar personagens até então menosprezados da nossa rica cultura popular.

Assim, essa mulher forte e companheira imprescindível, conquista seu próprio espaço nas histórias de Lobato, arrebatando o coração de seus leitores e desempenhando um importante papel educativo, fundamental em sua obra.

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REFERÊNCIAS:

https://alb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais16/sem08pdf/sm08ss05_04.pdf

https://perguntaspopulares.com/library/artigo/read/411903-quem-e-o-visconde-de-sabugosa

https://sitio.pmvs.pt/blog/2014/07/03/visconde-de-sabugosa-2/

https://portalcafebrasil.com.br/cafepedia/tia-nastacia/

memorias de Joyce e album da familia

As provocações do Visconde de Sabugosa, um mergulho no reflexivo universo lobatiano

Neste texto nós inauguramos uma série para analisar a origem e a personalidade dos principais personagens criados por Monteiro Lobato e que tornaram o Sítio do Pica-Pau Amarelo uma das mais importantes obras da literatura infantil brasileira.

Presente na maioria das histórias do Sítio, o Visconde de Sabugosa, personagem criado por Monteiro Lobato, acredita-se que foi inspirado em seu avô, o Visconde de Tremembé, um dos homens mais ricos e poderosos de sua época, amigo pessoal de D. Pedro II. Ele foi inclusive responsável pela iluminação pública da cidade de Taubaté, na primeira metade do século XIX, entre outras coisas.

O Visconde de Sabugosa nasce em 1921, no livro Narizinho Arrebitado, edição escolar. Fruto de uma brincadeira de Narizinho e Pedrinho, que queriam casar a boneca Emília com o Marquês de Rabicó. Pedrinho faz um boneco a partir de um sabugo de milho, para fingir ser pai do leitãozinho, pretendente à mão da boneca de pano.

Esse heróico personagem lobatiano nasceu em meio aos livros e morava num vão de armário na sala de jantar do Sítio do Pica Pau Amarelo.  As paredes da casa eram formadas por dois grossos volumes do Dicionário Morais. A obra “O Banquete 2”, “escrito por um tal Platão que viveu antigamente na Grécia e devia ter sido um guloso”, era a mesa do sabugo de milho. A “Enciclopédia do Riso e da Galhofa”, um “livro muito antigo e danado para dar sono”  que Lobato lera na juventude, tornou-se a cama do Visconde. Os demais “móveis”, ou seja, cadeiras, estantes e armários, eram formados por livros de capa de couro, herdados de um tio de Dona Benta.

O sabugo só mudou de casa depois que voltou do Reino das Águas Claras e passou uma semana inteira atrás da estante, ficou embolorado e como soltava um pó verde, começou a dormir numa lata, como revela o autor na quarta história de Reinações de Narizinho.

Antes mesmo de se tornar um personagem com diversas facetas, o Visconde era considerado um fidalgo muito distinto, viúvo e sua mãe, Dona Palha de Milho, faleceu num “horrível desastre”, comida pela vaca mocha. Logo no começo em que ganha vida, ele ainda tinha o tamanho de um sabugo de milho, mas tomou uma pitada de fermento e ficou do tamanho de uma pessoa normal.

Como Narizinho o embrulhou num velho fascículo das Aventuras de Sherlock Holmes, em Reinações de Narizinho, parece que isso influenciou o sábio de tal maneira que ele foi o responsável por descobrir não só a verdadeira identidade do suposto Gato Félix, mas também quem roubava a sombra de tia Nastácia em Peter Pan!  O sabugo “andava deduzindo” os fatos, mas não tinha ainda pistas definitivas. Incansável, ele desmascarou o raptor da sombra, que era ninguém menos do que Emília.

Sua condição de sábio lhe trouxe bons e maus momentos. Ele sofreu acidentes, empanturrou-se com a leitura de Álgebra, foi operado e salvou-se. Sua ânsia pelo conhecimento fez dele o professor dedicado em Aritmética da Emília e seus estudos de Geologia permitiram que fosse perfurado o primeiro poço de petróleo do Brasil, em “O Poço do Visconde”. Em “Os 12 Trabalhos de Hércules”, última obra de Lobato, o sabugo aparece como a concretização do saber científico.

Pelo fato de ser “consertável”, ele é sempre escolhido por Pedrinho para fazer as coisas mais perigosas. Sempre que ele estraga, se machuca ou até morre, Tia Nastácia simplesmente pega uma nova espiga de milho no paiol e faz um outro Visconde ainda melhor, reaproveitando somente a cabeça, os braços e as pernas. Apesar disso, pelo fato dele ter seu corpo formado por um sabugo e ter botões de milho no peito, Visconde morre de medo de passar perto de uma galinha, ou mesmo da Vaca Mocha!

Quando investigamos o personagem, nos deparamos com as suas variadas facetas, bem como o movimento da ciência no Sítio do Pica-Pau Amarelo. À medida que nos aprofundamos na obra, é possível estabelecer relações entre as várias concepções científicas do autor e a construção do personagem, reflexos do contexto histórico na criação literária lobatiana.

Lobato era um homem fascinado pelo progresso que ele achava que a ciência poderia trazer e buscava em estudos científicos, respostas de como gerar progresso para o nosso país e para os problemas crônicos do Brasil. Ele acreditava que soluções baseadas em pesquisas científicas seriam muito importantes para o desenvolvimento da nossa sociedade.

Vários estudos discutem ainda hoje a relação da literatura lobatiana com o ensino de ciências, sobre a história e a natureza da ciência, a motivação para estudar ciência, o método científico, concepção empirista ou revolucionária da ciência e suas aplicações. A literatura de Monteiro Lobato mostra a importância que o autor dava às relações do homem com a ciência e se contrapunha à literatura infantil da época baseada nos contos de fadas europeus.

Através de sua obra e mais especificamente na forma do personagem Visconde de Sabugosa, Lobato deixa transparecer a importância alcançada pelo conhecimento científico, demonstrando através de seus textos a necessidade do apoio à pesquisa e ao estudo científico em um período em que concordam os maiores intelectuais da época, o Brasil se encontrava ‘doente’ e a ciência era uma espécie de ‘caminho para a salvação do povo’.

Voltando a falar do nosso personagem, o Visconde de Sabugosa é um sábio que estuda latim, que tem dificuldade para se locomover em algumas situações e possui como marca registrada a tossezinha para limpar o pigarro antes de dar uma explicação. É dele que vem sempre a última palavra, como exemplo de alguém que detém o conhecimento, por isso é chamado para esclarecer dúvidas e solucionar problemas.

Ao representar o homem de ciência no Sítio, Lobato nos passa a impressão de que havia um movimento constante em sua obra e nas suas histórias. O Visconde cria sempre de modo misterioso, às escondidas, carregando um ar de distinção, como se a ciência fosse para poucos, apenas para homens especiais.

Na forma de um sabugo de milho que morre e reaparece, o porta-voz da ciência talvez tenha sido mais um recurso literário que Lobato utilizou para provocar a todos os seus leitores num convite à reflexão sobre a relação do homem com a ciência e os seus valores já naquela época.

A análise da trajetória do personagem Visconde de Sabugosa presente na maioria dos livros, revela que o autor elabora suas histórias permeadas de fatos científicos, de saberes práticos e teóricos, de diálogos, situações e ambientes em que tal personagem e os demais se inserem.

O Visconde é um dos personagens que nos levam a mergulhar em uma das mais ricas obras literárias nacionais, onde os livros não são meros papéis manuseados por um tempo, fechados e esquecidos após o fim da leitura. São histórias que nos convidam a ir mais além, mais para dentro de nós mesmos, como um convite para que a gente perca o medo de imergir no nosso próprio mundo de fantasias.

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REFERÊNCIAS:

https://alb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais16/sem08pdf/sm08ss05_04.pdf

https://perguntaspopulares.com/library/artigo/read/411903-quem-e-o-visconde-de-sabugosa

https://sitio.pmvs.pt/blog/2014/07/03/visconde-de-sabugosa-2/

https://semeadordelivros.com.br/na-trilha-de-lobato-entre-a-serras/

https://super.abril.com.br/ciencia/a-longa-historia-da-eugenia/

http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1273252078_ARQUIVO_REIVINDICACAOPOLITICAECONHECIMENTOCIENTIFICO.pdf

https://www.scielo.br/j/epec/a/n3jym7tYqMMvM4gFfgqTkwv/?lang=pt