Em defesa do Brasil, Lobato é preso por criticar Getúlio Vargas e o Estado Novo

Além de brilhante escritor, Monteiro Lobato foi um nacionalista convicto que ao longo de sua vida defendeu a importância do Brasil se estruturar para explorar o petróleo disponível em terras nacionais, evitando que empresas estrangeiras usufruíssem do bem que é nosso.

O fato de defender livremente suas ideias, acabou levando Lobato à prisão no começo da década de 1940.

Insatisfeito com as políticas públicas direcionadas ao setor petrolífero, no dia 24 de maio de 1940, em plena Ditadura do Estado Novo, o escritor enviou cartas ao então presidente Getúlio Vargas e ao general Góes Monteiro, chefe do Estado-Maior do Exército.

Nessas cartas, Lobato criticava os rumos que a política do governo havia adotado em relação a exploração do petróleo nacional, acusando o Conselho Nacional de Petróleo de retardar deliberadamente a criação da indústria petrolífera nacional além de perseguir as indústrias nacionais já instaladas no Brasil.

Getúlio tomou as palavras de Lobato como injuriosas e assim um processo contra o escritor foi instalado.

Era madrugada do dia 27 de janeiro de 1941, quando Monteiro Lobato foi arrancado de sua casa por agentes policiais e levado para a sede do DEOPS em São Paulo. Após ser qualificado, o escritor foi transferido para a Casa de Detenção.

Mais tarde, naquele mesmo dia 27, a Superintendência de Segurança Política e Social de São Paulo realizou uma busca e apreensão de documentos no prédio da Rua Felipe de Oliveira, 21, 9º andar, sala 4, onde ficava o escritório de Monteiro Lobato.

Entre os documentos encontrados estava a cópia da carta que o escritor havia remetido ao Presidente da República e ao general Góes Monteiro, que para o delegado Rui Tavares Monteiro, da Superintendência de Segurança Política e Social de São Paulo, já eram subsídio suficientes para concluir o inquérito policial declarar Lobato, culpado do crime de injúria contra o então Presidente da República, em 1º de fevereiro de 1941.

Monteiro Lobato permaneceu preso na Casa de Detenção de São Paulo por quatro dias. Incomunicável, sem o direito de receber visitas, de conversar com outros detentos e de tomar banho se sol. No dia 28, Lobato recebe um pacote enviado por sua esposa, Purezinha, com roupas de baixo, aspirinas e produtos para sua higiene pessoal. Ele põe tudo de lado, desamassa o papel do embrulho e escreve ali uma carta a sua esposa.

“Purezinha, só contarei o que é a vida em prisão. É a gente sozinho com os pensamentos, nunca o pensamento trabalha tanto. Mas de tanto trabalhar acaba girando num círculo. Meu dever era só cuidar de tua felicidade, Purezinha, e no entanto passei a vida a te contrariar e a fazer asneiras que tanto nos estragaram a vida.”[…..] Estou preso há quase 3 dias e já me parecem 3 séculos. As horas tem 60.000 minutos. As noites não tem fim. Sou obrigado a não fazer nada. Não há o que ler – nem jornais. E a incomunicabilidade em que estou agrava tudo, porque me isola completamente do mundo exterior. Não posso falar com ninguém nem comunicar-me com ninguém.”*

Purezinha e Ruth, filha mais nova de Lobato, conseguiram visitar o escritor apenas no dia 30, num encontro que foi monitorado pelo chefe dos investigadores, Heráclito Arantes Correa, que registrou toda a conversa por escrito.

No meio da tarde, neste mesmo dia, Lobato foi conduzido novamente a sede do DEOPS onde foi interrogado e confirmou tudo que havia escrito ao Presidente da República, e ao General Goes Monteiro na qual, entre outras coisas, acusava o Conselho Nacional de Petróleo de retardar a criação da grande estrutura petrolífera nacional e de perseguir sistematicamente as empresas nacionais. O escritor reiterou ainda, a acusação de que o Conselho Nacional de Petróleo agia única e exclusivamente no interesse do truste Standard Royal Dutch, confirmando todo o teor da carta em questão, esclarecendo que suas afirmações ali se encontravam plenamente justificadas pelos fatos apresentados. Lobato também explicou que escreveu ao General Góes Monteiro uma outra carta onde tachava o Presidente da República de displicente, porque o mesmo não tomava, em relação ao petróleo, as medidas reclamadas por ele, em defesa dos interesses nacionais.

Perguntado se estava convencido “de que o Conselho não passava dum ingênuo instrumento do imperialismo da Standard”, Lobato respondeu que sim, esta era a sua convicção.

O inquérito contra Lobato foi concluído no dia seguinte, dia 1º de fevereiro de 1941 e remetido ao Procurador Gilberto Goulart de Andrade, do Tribunal de Segurança Nacional, no Rio de Janeiro, onde tramitou até o dia 18 de março daquele ano, quando o procurador do caso pediu a prisão preventiva de Monteiro Lobato, por entender que o pedido de passaporte para a Argentina feito pelo escritor, deixava clara a possibilidade de fuga do mesmo.

Uma nova prisão, dessa vez sob a alegação preventiva, aconteceu no dia 20 de março, quando Lobato foi recolhido à Casa de Detenção de São Paulo, mas antes teve o direito de fazer um telefonema à sua esposa. Desta vez Lobato está preparado e encara o período com serenidade. Mantém um diário onde relata as visitas recebidas. Logo nos primeiros dias, Purezinha, com a filha Ruth e a neta Joyce vão visita-lo e levam sua máquina de escrever portátil e papel.

Lobato trabalhou furiosamente, transformando o cárcere em escritório. Recebe visitas, escreve dezenas de cartas, denuncia as condições carcerárias do presídio e as torturas ali praticadas contra os presos políticos. De acordo com sua neta Joyce, o escritor ensina os presos a ler, além de dar aulas diárias de historia e de “conhecimento gerais” durante a sua permanência na prisão.

Os advogados de Monteiro Lobato, Hilário Freire e Waldemar Medrado Dias, para sua defesa apresentaram vários argumentos jurídicos em favor de sua absolvição, além de demonstrarem as enormes contribuições do escritor ao País, defendendo que não houve crime de injúria, visto que o teor das cartas não havia sido divulgado. A principal estratégia da defesa foi traçar um paralelo do grande escritor com as maiores personalidades literárias mundiais, culminando por considerá-lo como homem público, de letras e um patriota, que inclusive havia feito uma expressiva dedicatória em seu livro ‘O Escândalo do Petróleo’, com quatro edições esgotadas à época, às Forças Armadas brasileiras.

O julgamento do escritor aconteceu no dia 8 de abril de 1941, no Tribunal de Segurança Nacional, onde Lobato foi inocentado, tendo reconhecido o livre exercício do direito de crítica, dadas as relações de amizade entre o autor e o destinatário, o caráter sigiloso da carta e a ausência dos elementos materiais e morais do crime de injúria. Mas o veredito é apelado imediatamente e Lobato volta a prisão, e o Tribunal Pleno, reforma a sentença absolutória por unanimidade de votos,  e condena José Bento Monteiro Lobato à pena de seis meses de prisão.

Monteiro Lobato não se abateu, continuou a escrever cartas e a denunciar as péssimas condições da prisão.  Distribuía tudo o que lhe era enviado entre os presos e fez inúmeras amizades. O escritor descobre que pode usar a máquina de propaganda do Estado Novo em beneficio próprio e reacende a polêmica do Petróleo. Em uma das cartas à Geraldo Serra, escreve: “A quem perguntar pela minha ilustra pessoa – diga que estou ótimo, satisfeitíssimo, na sala livre, com um belo jardim para  passear à vontade e com ótimos companheiros.”  Em outra, ele chega a afirmar: “Estou como queria, colhendo o que plantei. A causa do petróleo ganha muito mais com a minha detenção do que com o comodismo palrador aí do escritório.”

Os amigos de Lobato se organizam e crescem as manifestações de apoio após a condenação, tanto de conhecidos quanto de pessoas anônimas. De dentro da prisão Lobato se transforma em porta-voz dos outros presos e escreve constantemente aos amigos pedindo emprego para alguém que está sendo solto e revisão de processo e soltura daqueles que já haviam cumprido a pena. Lobato fez grandes amizades durante os meses que permaneceu preso e recebeu presentes, cartas e visitas dos presos durante varios anos.

Do lado de fora amigos se movimentam, redigem abaixo assinados, falam com autoridades e finalmente apelam a Getulio Vargas. Até que após três meses de prisão, Getulio concede o indulto a Lobato. Ele é solto no dia  20 de junho de 1941 mas os jornais são proibidos de noticiar o fato e Getulio impõe censura total a Lobato, impedindo-o de dar entrevistas até Marco de 1945.

Mas a perseguição não parou por aí e Monteiro Lobato, que recusou convites para participar tanto do governo como do Partido Comunista, foi alvo de outras perseguições policiais, revelando a face autoritária deste período da nossa história. Seu livro Peter Pan, para crianças, foi tido como subversivo e apreendido por incitar os infantes a “doutrinas exóticas”, “práticas deformadoras do caráter”, pois ‘predispunham as crianças a doutrinas perigosas e a práticas deformadoras do caráter’.

Mesmo após a saída de Vargas, durante o governo do general Dutra, o escritor foi alvo da repressão política, tendo outro de seus livros, o Zé Brasil, apreendido pela polícia. Sobre este fato, numa entrevista dada ao jornal Folha da Noite, em 5 de fevereiro de 1948 Monteiro Lobato disse que era a própria Constituição quem lhe garantia o direito de “escrever histórias”.

O escritor morreu 5 meses após essa entrevista, sem saber quantas vezes esses fatos ainda se repetiriam, mesmo que Constituições afirmassem o direito ao pluralismo político e a livre expressão do pensamento.

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Referências bibliográficas:

https://www.causaoperaria.org.br/artigo/ha-80-anos-monteiro-lobato-era-preso-por-criticar-o-estado-novo/

http://oextra.net/434/ha-75-anos-monteiro-lobato-era-preso-pela-ditadura-vargas

https://paginacinco.blogosfera.uol.com.br/2019/05/31/monteiro-lobato-prisao-cadeia-vargas/

https://www.publishnews.com.br/materias/2019/05/24/a-prisao-de-monteiro-lobato

http://www.usp.br/proin/inventario/destaques.php?idDestaque=5

https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/em-1941-monteiro-lobato-foi-preso-por-criticar-o-estado-novo.phtml

https://www.oabsp.org.br/sobre-oabsp/grandes-causas/a-prisao-de-monteiro-lobato

Carta de Lobato – Furacao na Botucundia, paginas 293-310

Jeca Tatuzinho: o anti-herói que virou símbolo nacional de saúde

Criado como retrato do homem do campo, lá no início do século 20, o personagem Jeca Tatu se transformou em um símbolo nacional de campanhas sanitaristas e de mobilização em torno da melhoria nos investimentos em saúde naquela época. Além de projetar o escritor Monteiro Lobato nacionalmente, ao longo do tempo o personagem sofreu mutações, saltando de um simples artigo de jornal, para dois livros e posteriormente como protagonista do Almanaque Fontoura, a maior peça publicitária da história do Brasil, que em 1990, atingiu a impressionante marca de 100 milhões de exemplares distribuídos.

Mas quem é e como surgiu o Jeca que nasceu Tatu e depois virou Tatuzinho, para fazer história e ajudar a transformar a saúde no nosso país?

É importante ressaltar que este texto não é, e nem tem a menor pretensão de ser, um artigo científico, algo que deixamos a cargo das inúmeras pessoas que dedicam suas vidas a pesquisar a vida e resgatar a vida e a obra de Monteiro Lobato. Este artigo busca resumidamente, sem o devido aprofundamento que um artigo científico exige, destrinchar a figura desse icônico personagem, desde a sua gênese até seu sucesso se transformando numa referência nacional que ainda hoje desperta a curiosidade, principalmente dos profissionais em publicidade.

Queremos, assim como Lobato brilhantemente fazia, provocar você leitor, a mergulhar cada vez mais fundo no universo lobatiano, despertando a sua curiosidade para desvendar os muitos ‘porquês’, além de estimular, quem sabe, novos estudos em torno das tantas curiosidades que esse gênio ainda hoje insiste em alimentar em nossa mentes.

Para escreve-lo, nós nos baseamos em dois trabalhos de pesquisa: na tese de mestrado em história do professor Evandro Avelino Piccino, “A persistência de Jeca Tatuzinho – Igual a si e a seu contrário”, para a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), em 2018; e na tese de doutorado em História Social, da professora Carmem Lúcia de Azevedo, “Jeca Tatu, Macunaíma, a preguiça e a brasilidade”, para a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em 2012. Além da orientação e revisão do designer e bibliófilo Magno Silveira.

De acordo com o que encontramos, o Jeca nasceu Tatu em 1914, como parte da argumentação de dois artigos escritos para o jornal O Estado de S. Paulo: “Velha Praga” e “Urupês”. O primeiro, na verdade era uma carta escrita por Lobato para a seção de queixas e reclamações, mas que chamou a atenção dos editores do periódico, por seu conteúdo, que decidiram então publica-la como um artigo em destaque no jornal, no dia 12 de novembro daquele ano. O personagem foi a forma encontrada pelo escritor para expressar a sua revolta com a velha praga das queimadas provocadas pelos caboclos da Serra da Mantiqueira, local onde à época ele vivia a vida de fazendeiro, na propriedade herdada do avô, o Visconde de Tremembé.

Quarenta dias depois da publicação de Velha Praga, em 23 de dezembro, 1914, o mesmo jornal publicava “Urupês, um longo artigo de aproximadamente 3.400 palavras e organizado em duas partes. Na primeira, Monteiro Lobato coloca uma questão de fundo, da qual ele próprio se tornara um grande crítico: o “caboclismo”, uma representação idealizada do caboclo – e na segunda ele faz uma descrição detalhada do personagem Jeca Tatu, nome com o qual batizara o seu caboclo: “um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome da carne onde se resumem todas as características da espécie.

Mas, na realidade, a idéia de concepção do personagem, a gestação do Jeca Tatu, propriamente dita, começou alguns anos antes, como demonstram algumas cartas escritas por Lobato ao amigo e colega de Cénaculo, Godofredo Rangel, com quem costumava se corresponder enquanto Lobato vivia sua experiência de fazendeiro. Numa carta, de fevereiro de 1912, Lobato comenta com o amigo, que andava pensando sobre uma teoria do caboclo como “o piolho da terra, o Porrigo decalvans das terras virgens”, e que essa sua teoria daria “um livro profundamente nacional”. Em abril daquele mesmo ano, o escritor confidencia a Rangel: “Vou ver se consigo escrever um conto, o Porrigo decalvans, em que considerarei o caboclo um piolho da terra, uma praga da terra”. Por fim, no dia 20 de outubro de 1914, numa nova correspondência, a última onde trata sobre o assunto com o amigo, antes de escrever a famosa carta para a seção de queixas e reclamações do jornal O Estado de S. Paulo, Lobato escreveu: “Contar a obra de pilhagem e depredação do caboclo. A caça nativa que ele destrói, as velhas árvores que ele derruba, as extensões de matas lindas que ele reduz a carvão. Havia uma gameleira colossal perto da choça, árvore centenária – uma pura catedral. Pois ele derrubou-a com ‘três dias de machado’ – atorou-a e dela extraiu… uma gamelinha de dois palmos de diâmetro para os semicúpios da mulher! […] Como aproveitou a gameleira, assim aproveita a terra. Queima toda uma face de morro para plantar um litro de milho”.

Com o título inspirado no urupê – um tipo de cogumelo parasitário que destrói a madeira – Monteiro Lobato publica, em agosto de 1918, Urupês, obra focada no personagem Jeca Tatu, que reúne uma coletânea de contos escritos pelo autor, além do artigo homônimo, escrito anteriormente para o jornal O Estado de S. Paulo, considerado a jóia do livro. Na segunda edição, o escritor incluiu o artigo jornalístico Velha Praga e assim o livro assume seu formato definitivo com 12 contos e 2 artigos, pela ordem: Velha Praga e Urupês.

Mas foi a partir das teses sobre saúde pública de Belisário Pena e Artur Neiva, que o próprio Monteiro Lobato reformulou o seu juízo sobre o Jeca, respondendo assim já na segunda edição de Urupês: “Está provado que tens no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie”, admite então. “É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro que não.”

Se o Jeca Tatu nasceu como uma espécie de ‘anti-herói’ nacional nos dois primeiros artigos para O Estado de S. Paulo, ele passa a se transformar, à medida que o escritor vai conhecendo de perto o árduo trabalho dos sanitaristas da época, através das campanhas e expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz, em um símbolo da luta por melhores condições de saúde no Brasil. Essa mutação pode ser percebida, a partir de 18 de março de 1918, quando Lobato passa a escrever no mesmo jornal, uma série de artigos sobre saúde pública e saneamento, que posteriormente foram reunidos no livro “Problema Vital“, publicado no final daquele ano e onde afirma categórico: “O Jeca não é assim; está assim“, deixando claro que o estado lastimável em que se encontrava o caipira era culpa do descaso das autoridades públicas. Antes descrito pelo autor como um parasita, um piolho da terra, o Jeca passou a vítima da falta de atenção e investimentos em saúde por parte do governo.

Em 1919, Lobato propõe ao farmacêutico Cândido Fontoura, fundador e sócio majoritário do Instituto Medicamenta Fontoura & Serpe, de quem era amigo, o lançamento de Jeca Tatuzinho, um folheto publicitário, para o medicamento vitamínico Biotônico Fontoura (ankilostomina). O diminutivo do título, para ‘Jeca Tatuzinho’, segundo seu criador, se justificaria pelo pequeno formato da peça publicitária, semelhante a de um almanaque de farmácia, e não ao personagem Jeca Tatu. A ideia entretanto só sairia do papel em 1926.

Em 1924, Monteiro Lobato lança por sua própria editora o livro Jeca Tatuzinho, com capa dura, ilustrações do alemão Kurt Wiese e dirigido ao público infantil. A obra narra a história de um médico que se hospeda na casa do Jeca e fica  horrorizado com a condição da saúde do Jeca. O medico lhe dá instruções de como ir lá no mato e  pegar a erva de Santa Maria e prepará-la para matar o amarelão. Alem disso o médico o orienta tomar um vermifugo forte e sempre usar sapatos, pois a infecção ocorre por andar descalço! Este livro foi reeditado apenas mais uma vez em 1930, pela Cia. Editora Nacional, mantendo a capa dura, mas em tamanho maior do que a primeira edição. O enredo não mudou mas as ilustrações de Kurt Wiese da edição anterior, ganharam um novo projeto gráfico ocupando mais espaço, com cores mais vivas e texto mais rebuscado, sem a divisão em pequenos capítulos. Essa segunda edição trouxe ainda uma nota do autor, explicando que foi o texto do livro quem gerou a idéia do folheto (e não o contrário).

 A primeira edição do folheto publicitário Jeca Tatuzinho, patrocinado pelo laboratório Fontoura, foi finalmente publicada em 1926. Não há como precisar a data de produção e distribuição exata dessa primeira edição do Almanaque Fontoura porque nenhuma das primeiras edições, ilustradas por Kurt Wiese foi datada. Há indícios de que inicialmente o lançamento dessa que é considerada a maior peça publicitária de todos os tempos no Brasil, seria 1925, porém ele só aconteceu em 1926, através da distribuição dos primeiros exemplares nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo.

O Almanaque Fontoura continha a mesma história do livro Jeca Tatu mas agora com uma importante modificação: O médico passa a  receitar o Ankilostomina Fontoura para curar o amarelão e o Biotônico Fontoura para fortalecer o Jeca. O folheto era impresso em papel jornal, o formato pequeno (formato 11×15 cm), em preto e branco, com propagandas do Biotônico e da Ankilostomina Fontoura em seu interior. O Almanaque Jeca Tatuzinho tinha como estrutura narrativa, um texto composto por cerca de 2.200 palavras, apoiado por ilustrações e uma didática bem acessível às crianças, público prioritário do folheto. Dividido em 18 pequenos capítulos, cada um deles aberto por uma ilustração sintetizando visualmente o conteúdo e ocupando perto de dois terços da página. Com um total de 40 páginas, incluindo capa e contracapas, as edições ilustradas até 1939 pelo alemão Kurt Wiese são formadas por uma história narrada em 36 páginas e as demais preenchidas por anúncios de produtos do Instituto como o Biotônico e a Ankilostomina Fontoura. A argumentação do folheto respeita a clássica construção publicitária em dois momentos: o antes e o depois, com a narrativa apresentando inicialmente a frágil situação sanitária e de saúde do Jeca Tatuzinho, para depois dramatizar a quase milagrosa eficácia dos produtos do patrocinador. A partir de 1940, até 1957, a ilustração do Almanaque passou a ser feita pelo paulistano Jurandyr Ubirajara Campos, genro de Monteiro Lobato e pai de Joyce Campos, que ilustrou a publicação.

Outra curiosidade, é que muitas pessoas na época não sabiam ler e a saída que Lobato encontrou para tornar o Jeca Tatuzinho acessível ao maior número possível, foi falar com os adultos como quem fala com crianças, não apenas com textos bem simples, mas sobretudo utilizando ilustrações concebidas para se comunicarem por si só. Assim o simples folhear das páginas, combinado com a observação das figuras, facilitava a compreensão básica, embora superficial, do enredo. Desse modo, o papel dos ilustradores era muito importante na comunicação do personagem. O Almanaque Jeca Tatuzinho,somente passou a ser datado a partir de 1941, já com o ilustrador Jurandyr Ubirajara Campos, quando a publicação também passou a ser feita em duas cores e já acumulando naquela época, mais de 10 milhões de exemplares. A marca dos 12 milhões de exemplares foi atingida na 15ª edição, em 1958, quando o Almanaque passou a ser totalmente colorido. Já em 1962, a capa é redesenhada em cima de um desenho de Jurandyr Ubirajara Campos, ganhando um aspecto mais comercial e batendo a casa dos 32 milhões de exemplares distribuídos. Em 1973, quando o Brasil tinha apenas 100 milhões de habitantes, o Almanaque Jeca Tatuzinho ultrapassa a impressionante marca de mais de 84 milhões de exemplares. O Almanaque também foi editado em outros idiomas, como o alemão e o japonês, nos anos de 1940 sendo até hoje a peça publicitária de maior sucesso no Brasil!


REFERÊNCIAS

https://monteirolobato.com/evandro-avelino-piccino%20-jeca-tatuzinho.pdf

https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-10012013-100230/publico/2012_CarmenLuciaDeAzevedo_VCorr.pdf

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45254398

https://www.encontro2018.sp.anpuh.org/resources/anais/8/1525294469_ARQUIVO_eventoampuh.pdf

Lobato Publicitário

Escritor, tradutor, jornalista, pioneiro, homem de ação… são tantas as facetas de Lobato que algumas acabam ganhando pouco destaque e quando são lembradas, causam até certa surpresa. É o caso da sua da sua relação com a propaganda, que vai muito além do perfil de propagador de ideias. Lobato foi, numa época que esta profissão era incipiente, desenhista publicitário, técnico em anúncios, garoto-propaganda, pioneiro no uso da venda de anúncios para divulgar seus livros – isto dentro dos textos, usando de menções de um livro para vender outro, e fora, como anúncios – criou “jingles” e “slogans” e também fez parte da maior companha publicitária do Brasil.

Segundo a professora Paula Renata Camargo de Jesus, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e mestre em Comunicação Social/ Comunicação Científica e Tecnológica pela UMESP, em “Poesia e arte na publicidade de medicamentos: um diálogo imprescindível na história da publicidade brasileira”, trabalho apresentado no Xº Congresso Nacional de História da Mídia, realizado na cidade de Porto Alegre, RS, Monteiro Lobato, sem recursos, precisou recorrer a patrocinadores para custear a publicação do livro “O Sacy Pererê, resultado de um inquérito”, seu primeiro livro, publicado com o pseudônimo Josbem, no início de 1918. O livro chegou ao público com quatro anúncios ilustrados por Voltolino na abertura, vendendo máquinas de escrever Remington, chocolates Lacta, cigarros Castelões, Caza Stolze (artigos fotográficos), além de outras três propagandas no fechamento: Casa Freire (louças e objetos de arte), Chocolate Falchi e Bráulio & Cia (drogaria e perfumaria). Ela cita ainda, que muito provavelmente, este deve ter sido o primeiro merchandising da publicidade brasileira, com produtos sendo oferecidos pelo personagem Sacy Pererê, em situações deliciosamente irreverentes.

Mas a campanha publicitária de maior sucesso que Lobato participou teve início com  a junção de sua experiencia como fazendeiro enter 1911-1917 e o movimento sanitarista de Oswaldo Cruz junto com sua amizade de longa data com Candido Fontoura. O movimento sanitarista permitiu um maior conhecimento das moléstias que assolavam o país. Esse movimento sensibilizou várias personalidades para a situação das moléstias endêmicas entre os brasileiros e a falta de saneamento básico existente, entre elas, Monteiro Lobato, que já era famoso à época. Graças ao contato com as pesquisas de Manguinhos, principalmente os trabalhos de Belisário Pena e Arthur Neiva, o levaram a se engajar numa grande campanha pelo saneamento do país, tendo como base a alteração da concepção do Jeca Tatu, nascido no artigo Velha Praga. A convivência com Arthur Neiva, Belisário Pena e outros pesquisadores, bem como a leitura do livro de Pena, “O saneamento do Brasil”, levaram o escritor a rever totalmente sua concepção do caboclo Jeca Tatu. No prefácio da quarta edição de Urupês, ainda em 1918, ele reconheceu: “Eu ignorava que eras assim, meu caro Jeca, por motivo de doenças tremendas. Está provado que tens no sangue e nas tripas todo um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte.”

Monteiro Lobato não parou mais. Indignado com a situação do país, se lançou numa vigorosa campanha jornalística em favor do saneamento, denunciando, sem medir palavras, a realidade nacional, apresentando estatísticas, como os 17 milhões de brasileiros com ancilostomose, três milhões com Chagas e dez milhões com malária. Ele ainda denunciou fraudes nos produtos consumidos pela população, além de ironizar os poucos recursos investidos na saúde pública. A campanha de Lobato acabou forçando o governo a dar atenção ao problema sanitário, começando pela criação de uma campanha de saneamento em São Paulo, sob o comando de Arthur Neiva. O código sanitário foi então remodelado e finalmente transformado em lei. O escritor reuniu seus artigos sobre a questão no livro “O problema vital.

Mas Lobato queria mais. Considerava imprescindível, mobilizar não apenas as elites, mas alertar e educar toda a população brasileira sobre as consequências da falta de saneamento. Ele escreveu então “Jeca Tatu – a ressurreição”, livro que ficou mais conhecido como “Jeca Tatuzinho”, em 1924. Este livro, de capa dura ilustrado por Kurt Wiese em preto e branco contava a história onde o nosso Jeca era visitado por um médico que o diagnosticava com verminose e lhe ensinava a receita de como fazer um vermifugo com a erva Santa Maria, que nasce no mato. Alem disso o médico mandava o Jeca usar sapatos e tomar um bom purgante. Quando o medico volta dali a um mês o Jeca é um homem novo, curado e revigorado!

De acordo com o escritor e biógrafo de Lobato, Edgard Cavalheiro, em “Vida e Obra de Monteiro Lobato”, o primeiro grande trabalho do escritor como publicitário foi quando ele adaptou seu livro homônimo, tendo Jeca Tatuzinho como protagonista, para a o folheto de propaganda de dois preparados farmacêuticos, o “Biotônico” e a “Ankilostomina Fontoura”. fazendo campanha contra a ancilostomose (amarelão), uma verminose contraída quando entramos em contato com o solo contaminado por fezes. Esses vermes entram através da sola dos pés e chegam à corrente sanguínea e atingem o sistema digestivo, onde se desenvolvem, passando ali a se alimentam de sangue e podendo provocar anemia em casos mais graves.

Na disssertacao de mestrado do professor Evandro Avelino Piccino “Jeca Tatuzinho: um ‘causomemorável da história da publicidade brasileira”, para a PUC/SP, disponível no banco de teses aqui do nosso site, o professor relata que o lançamento do panfleto aconteceu em 1926, e se chamou Jeca Tatuzinho. Neste almanaque Lobato basicamente pegou sua historia original do seu livro homônimo e alterou para o medico receitar od produtos do laboratório do seu amigo Cândido Fontoura. Desta vez, o medico após ver o paciente com verminose, fraco, receita Ankilostomina Fontoura como vermifugo e para recuperar as forças, o Biotônico Fontoura. O folheto original é uma publicaçao barata, em papel jornal, com ilustrações em preto e branco feitas pelo Alemao Kurt Wiese que ilustrou o almanaque até 1939 quando foi substituído pelo paulistano Jurandyr Ubirajara Campos, genro de Monteiro Lobato que por sua vez, ilustrou o almanaque entre 1940 e 1957. Jeca Tatuzinho, em seu formato original, foi publicado de 1926 regularmente até 1973. Um ano depois, em 1974, a historia passa a ser editada em quadrinhos, e circulou até o ano de 1988.

Do ponto de vista publicitário, não só a história era uma peça publicitária mas tambem, o folheto continha anúncios do Biotônico e do Ankilostomina Fontoura recomendados pelo médico na história. O almanaque Jeca Tatuzinho é considerado a peça publicitária de maior sucesso na história da propaganda brasileira, inspirando inclusive a agência Castelo Branco e Associados, a criar em 1982, o Prêmio Jeca Tatu numa homenagem “à obra-prima da comunicação persuasiva de caráter educativo, plenamente enquadrada na missão social agregada ao marketing e à propaganda”. De acordo com a publicação “Vendendo Saúde – A História da Propaganda de Medicamentos no Brasil”, publicada pela Anvisa, no portal Gov.br, o Almanaque Fontoura alcançou na década de 1980, a incrível marca de 100 milhões de exemplares distribuídos.

Monteiro Lobato não apenas redigiu, mas chegou também a ilustrar anúncios do Biotônico Fontoura, além de acompanhar o amigo no lançamento e na sustentação do Almanaque do medicamento, protagonizado pelo personagem Jeca Tatu, que passou a ser chamado Jeca Tatuzinho.

Em artigo de Julho de 2020, no portal “SP in Foco”, o jornalista Abrahão Oliveira afirma que o nome do medicamento, seria uma homenagem ao seu criador, o farmacêutico Cândido Fontoura Silveira, que teria criado uma fórmula rica em ferro para a sua esposa, que sofria com muito cansaço e tinha o físico debilitado. Com os bons resultados do seu tônico, ele decidiu então fundar em São Paulo, em 1910, aos 25 anos de idade, uma fábrica/farmácia para produzir seu tônico em escala comercial. Essa era uma prática normal no início do século 20. Ainda de acordo com a publicação, Cândido não conseguia pensar em um bom nome comercial para o medicamento e aí entra a figura de José Bento Monteiro Lobato, acostumado a usar técnicas publicitárias em seus livros e que teria então sugerido o nome de “Biotônico Fontoura”. Essa informação porém, não é confirmada pelo fabricante em seu site oficial, que apresenta apenas um breve resumo histórico, citando Monteiro Lobato como padrinho de peso da marca e criador do “Almanaque Fontoura”.

Em nossas pesquisas não encontramos referências à remuneração ou não desse trabalho, e se tivesse ocorrido, de que modo teria sido essa remuneração? O artigo “Estudos Mediáticos da Publicidade Infantil: Proposta de análise do discurso publicitário na interface com o discurso literário”, publicado na revista Pensamento & Realidade da PUC, das professoras Lívia Silva de Souza e Cinira Baader, cita que a diferença entre Monteiro Lobato e outros escritores e poetas que redigiram propagandas na época, é o fato de que ele fazia isso gratuitamente, como uma simples troca de favores, sem maiores detalhes. Embora isso classifique o personagem Jeca Tatuzinho como atividade publicitária não profissional, a obra ainda hoje é uma referência da redação publicitária brasileira, sendo o Jeca Tatuzinho, o mais longo texto publicitário escrito em forma de história de ficção no Brasil.

Além do Biotônico Fontoura, o publicitário Monteiro Lobato também contribuiu com ideias publicitárias para a editora que levava o seu nome, bem como com a “Revista do Brasil”, fundada por ele, e que se tornou um importante veículo de propaganda para o escritor. Lobato uniu o seu talento publicitário com a sua veia jornalística, para fazer a propaganda comercial da sua companhia de petróleo. Fundou ainda um jornalzinho-revista chamado “Coisas Nossas”, que ajudou a tornar mais fácil a penetração no mercado, das coisas que ele vendia, ressaltando a sua veia estratégica para os negócios.

É interessante registrar que a fórmula original do Biotônico Fontoura possuía 9,5% de álcool etílico, o que levou a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a obrigar a empresa a modificar a fórmula do medicamento em 2001. A revista Veja SP, no artigo “Dez curiosidades sobre o Biotônico Fontoura”, relata que o medicamento foi exportado em grande quantidade para os Estados Unidos, durante a Lei entre os anos de 1920 e 1933. Por ser um remédio, apesar do seu teor alcoólico, a sua venda nos Estados Unidos foi permitida.

O artigo “Lobato Publicitário” publicado pelo site Almanaque Urupês, ainda nos revela que como publicitário, Lobato também vivenciou o papel de ‘garoto propaganda’ no modelo testemunhal, tão comum nos dias de hoje, atestando a qualidade de produtos para empresas de propaganda, como o fac-símile de um anúncio sobre máquina de escrever.

Uma pesquisa mais aprofundada sobre a vida do escritor, nos revela o seu olhar inovador na área da publicidade no Brasil. É fácil perceber que é a partir de Lobato que a propaganda começa a se desenvolver no país. Indiscutivelmente Monteiro Lobato era dono de um talento ímpar e possuía um processo criativo ilimitado. Lobato soube, como poucos, percorrer os mais diferentes caminhos ao longo de sua vida. Pesquisar esse universo lobatiano, é mergulhar num mar de infinitas possibilidades e que nos desperta um desejo imenso de ir cada vez mais fundo.

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REFERÊNCIAS

almanaqueurupes.com.br/index.php/2013/04/18/lobato-publicitario/

http://almanaqueurupes.com.br/index.php/2013/09/10/o-caipira-de-rui-barbosa/

https://www.revistas.usp.br/comueduc/article/view/43279/46902

colecionadordesacis.com.br/2018/01/24/monteiro-lobato-jeca-tatuzinho-1925/

https://revistas.pucsp.br/index.php/pensamentorealidade/article/view/7560/5500

http://www.ppe.uem.br/publicacoes/seminario_ppe_2009_2010/pdf/2010/021.pdf

https://dspace.mackenzie.br/bitstream/handle/10899/25191/Rog%c3%a9rio%20Aparecido%20Martins.pdf?sequence=1&isAllowed=y

https://docplayer.com.br/19902885-Poesia-e-arte-na-publicidade-de-medicamentos-um-dialogo-imprescindivel-na-historia-da-publicidade-brasileira-1.html

http://www.poeteiro.com/2019/09/lobato-publicitario-resenha.html

zolerzoler.wordpress.com/2019/03/14/monteiro-lobato-na-publicidade-biotonico-fontoura/

https://www.encontro2018.sp.anpuh.org/resources/anais/8/1525294469_ARQUIVO_eventoampuh.pdf

https://vejasp.abril.com.br/coluna/memoria/dez-curiosidades-sobre-o-biotonico-fontoura/

https://www.biotonicofontoura.com.br/historia-da-marca

http://memoria.bn.br/pdf/102725/per102725_1948_00004-00005.pdf

https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/165/161