“Negrinha” em sala de aula; uma experiência para quebrar preconceitos

“Negrinha” em sala de aula; uma experiência para quebrar preconceitos

A ideia deste texto é compartilhar com educadores, uma experiência bastante interessante, de como o professor pode utilizar o conto antirracista Negrinha, de Monteiro Lobato, para discutir com seus alunos, em sala de aula, a situação atual do preconceito e do racismo no Brasil.

Entre as inúmeras pesquisas que analisam essa temática na obra de Lobato, encontramos a dissertação, apresentado pela professora Tatiane Cristina da Costa, para o Mestrado em Letras, na Escola de Filosofia, Letras e Humanas da Universidade Federal de São Paulo, em 2019, intitulado: Negrinha na sala de aula: estímulo ao preconceito ou à reflexão?”.

Conduzida em sala de aula, essa experiência possibilitou uma análise sobre a recepção dos estudantes em relação a esse famoso conto lobatiano, com a intenção de observar como e a partir de quais recursos esses estudantes, construiriam hipóteses interpretativas sobre o texto, em especial no que diz respeito à questão racial.

A ideia, de acordo com a pesquisadora, foi justamente verificar se a leitura do conto Negrinha estimularia ou não o racismo, se contribuiria ou não para uma reflexão acerca do tema entre os próprios estudantes. Esse trabalho foi desenvolvido durante dois dias e envolveu um grupo de alunos, a maioria com 17 anos de idade, de uma escola técnica (ETEC), localizada no bairro Paraisópolis, na cidade de São Paulo, em dezembro de 2018. O grupo, formado em sua maioria, por estudantes que se declararam afrodescendentes, estudaram em escolas públicas durante o Ensino Fundamental e na maior parte, eram de famílias com renda de até 2 salários mínimos mensais para o seu sustento, o que faz com que elas sejam consideradas de renda salarial baixa.

A pesquisa aconteceu em dois momentos distintos. No primeiro, os alunos receberam o conto Negrinha para uma leitura individual e silenciosa da narrativa, devendo, quando julgassem necessário, fazer anotações sobre todas as observações que tiveram. É importante dizer, que o grupo ainda não tinha lido a obra e nem recebeu qualquer tipo de influência que pudesse direcionar sua interpretação. Foram então formuladas questões para ouvir os comentários com relação a linguagem, enredo, estrutura, personagens, autor e sentimentos que o conto despertou.

Após a leitura, os alunos revelaram que se sentiram muito tocados pelos maus tratos e abusos sofridos pela menina, que a narrativa mexeu muito com o sentimento deles, despertando compaixão e até mesmo a vontade de chorar durante a leitura. Palavras diferentes, pouco ou nunca ouvidas por eles, chamaram a atenção, mas não foram empecilho para que pudessem identificar o significado delas.

O estudo identificou que a leitura de Negrinha despertou nos alunos percepções importantes como a corrupção dos homens pelo meio, a valorização de coisas simples, como o brincar de bonecas, a tolerância em meio as maldades sofridas pela protagonista e inclusive o papel da mulher na sociedade da época. Outros temas importantes como a

frustração de Dona Inácia por não ter filhos e descontar na pobre menina esse sentimento, o racismo dessa personagem (e não do autor), o conformismo da própria Negrinha que se sentia culpada e merecedora dos maus tratos sofridos por tanto ouvir da dona da casa que esse tratamento servia para educá-la, a transformação pelo brincar tambem foram discutidos pelo grupo.

Não foi necessária, de acordo com a professora que realizou a pesquisa, qualquer explicação ou introdução dos temas aos alunos, que pelo contrário, se mostraram autônomos, críticos e maduros para que houvesse uma leitura sem a necessidade de intervenções. Os procedimentos didáticos utilizados nessa atividade privilegiaram a leitura individual e a livre interpretação do texto por parte dos estudantes. Vale ressaltar ainda, que de acordo com educadores, a ironia presente ao longo de toda a narrativa, é uma das modalidades mais difíceis de ser identificada, porque ela exige maturidade do leitor. Mas apesar disso, os estudantes conseguiram identifica-la na leitura.

RESULTADOS DO SEGUNDO MOMENTO ESTUDO

O segundo momento contou com a construção coletiva do contexto histórico-social da década de 1920. Foram levantadas várias questões importantes como o crescimento das cidades, a marginalização do campo, a abolição da escravatura, a situação precária dos negros após a abolição e a mão-de-obra imigrante no Brasil. Após as discussões a respeito desse contexto histórico, no qual o conto foi escrito, os alunos fizeram uma reflexão, tendo como foco principal o papel do negro na sociedade da época.

Os alunos identificaram a falta de amparo da sociedade e do governo aos ex-escravos, após a abolição, apontando essa a causa para que eles passassem a viver à margem da sociedade e continuassem a sofrer com os maus tratos nas próprias fazendas. Questionados se a impressão que tiveram inicialmente do conto após a discussão do segundo dia havia mudado alguma coisa, os alunos afirmaram que nada havia mudado e alguns inclusive se mostraram convencidos de que o texto havia sido escrito para conscientizar as pessoas e apresentar a realidade dos negros no nosso país.

Os alunos também foram questionados se acreditavam que o foco do livro seria mesmo discutir o preconceito racial ou se o conto seria fruto do suposto racismo do autor. A conclusão, foi a de que o preconceito racial era o foco do livro, porque a maneira como a personagem Negrinha foi retratada, fez a maioria deles ter simpatia por ela, chegando inclusive a chorar durante a leitura por compaixão à menina, o que não ocorreria se o autor fosse realmente racista.

A atividade evidenciou, a partir das afirmações feitas pelos próprios participantes da pesquisa, que as discussões sobre o preconceito racial são muito incipientes e que o estudante reconhece a necessidade desse tipo de debate para que o problema possa ser efetivamente combatido. O texto apresentado ao grupo foi um ponto de partida importante para as reflexões sobre esse assunto e também sobre o autor mostrando que a leitura deste conto nas escolas pode despertar a criticidade dos jovens leitores, algo que o próprio autor sempre buscou.

As conclusões desse estudo, demonstraram ainda que os jovens gostam de participar e expor suas opiniões, deixando claro o quanto apreciam ser ouvidos e também ter suas opiniões respeitadas. Esse fato é um indicativo claro da necessidade de se

fomentar a leitura e a interpretação dos mais variados textos nas salas de aula em todo o Brasil. Mas o foco precisa ser não apenas despertar nos nossos estudantes o hábito pela leitura e sim, desenvolver nesses jovens leitores o senso crítico e intelectual, atributos fundamentais na formação de cidadãos verdadeiramente atuantes em nossa sociedade.

Para acessar o conteúdo completo desse estudo realizado pela professora Tatiane Cristina Costa, basta acessar este link: https://monteirolobato.com/wp-

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DICA PARA EDUCADORES

Para ler os textos de Lobato, é preciso antes entender o momento histórico vivenciado pelo escritor, suas convicções políticas, sua poética, seu projeto literário e a importância de sua iniciativa para a formação do mercado editorial brasileiro. Seus textos dialogam com o contexto histórico das décadas de 1920, 1930 e 1940, período onde tivemos a Segunda Guerra Mundial, as intervenções de Getúlio Vargas e a mentalidade escravocrata que permeava as relações sociais.

Nunca é demais lembrar, que aula de literatura é também aula de história, sociologia, geografia e filosofia. Conhecer um pouco mais de Lobato, sua fortuna crítica, livros e artigos de estudiosos como Marisa Lajolo, Milena Martins, Leonardo Arroyo, Cassiano Nunes, Nelly Novaes Coelho, Regina Zilberman, João Luis Ceccantini, Cilza Bignotto e Vanete Santana Dezmann entre outros, podem oferecer ao educador um curioso panorama sobre as diversas facetas do escritor a ponto de enriquecer a prática educativa.

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REFERÊNCIAS:

https://monteirolobato.com/wp-content/uploads/2021/08/DISSERTACAO-FINAL-Tatiane-

Negrinha; mais que um conto, uma reflexão antirracista

Mais de cem anos depois de seu lançamento, Negrinha se mantém como um conto muito atual pela sua temática que envolve as questões raciais que ainda se mantém bastante problemáticas em nosso país, uma nação que infelizmente persiste no chamado “mito da democracia racial”.

Em sua primeira edição, lançada em 1920, o livro, voltado para o publico adulto, era composto por seis contos: Negrinha, Fitas da vida, O drama da geada, O Bugio moqueado, O Jardineiro Timóteo e O colocador de pronomes. Destes apenas o conto Negrinha, que dá nome ao livro, não se passava no ambiente urbano e foi escrito por Lobato antes e depois da viagem aos Estados Unidos. Esse foi também o primeiro livro em que o escritor começa a se afastar do ambiente rural.

Escrito em terceira pessoa, Negrinha tem uma carga emocional muito forte, sendo considerado, pela crítica, um dos conto mais impactantes de Monteiro Lobato. Este conto retrata uma época marcada pelo autoritarismo e pelo preconceito racial, protagonizado pela personagem-título, filha de uma ex-escrava e sem nome próprio. Após a abolição, em 1888, Negrinha se tornou criada na casa de dona Inácia, uma senhora rica, antiga proprietária de escravos libertos pela lei Áurea, sem filhos e interessada apenas em promover a imagem de caridosa aos olhos da Igreja. Com a morte da mãe, Negrinha tem o seu destino colocado aos “cuidados” dessa senhora, que não abandonou a visão e os costumes do antigo regime escravocrata, tratando a menina como sua absoluta posse.

A narrativa lobatiana é carregada de críticas que revelam a situação das classes menos favorecidas de uma sociedade brasileira totalmente discriminatória. A insatisfação do escritor com essa situação é notada já a partir do título da obra, com a utilização  do sufixo –inha, demonstrando o tratamento pejorativo dado à personagem principal no decorrer do conto, apresentada como “[…] uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados”. Essa descrição não revela apenas as características físicas da menina, mas também a sua condição social e o seu constante estado psicológico. Negrinha é vítima de um meio social injusto e preconceituoso, cujos padrões se valem da submissão dos mais fracos e da hipocrisia, representados por Dona Inácia, a dona da fazenda, caracterizada por seu status e suas falsas virtudes: “Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu […] Mas não admitia choro de criança”.

Dona Inácia, representando a maioria da elite branca brasileira, não se adequou à abolição da escravatura e Negrinha continuou escrava, guardando as marcas da hostilidade, sendo vítima de violência física e psicológica, não apenas de sua cuidadora, mas também sendo vítima dos outros moradores e empregados  da casa. “Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão […] Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata choca, pinto gorado, mosca morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa ruim, lixo – não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam […] O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo.

Sem identidade própria, Negrinha é tratada como um objeto, um animal que precisa ser domesticado, proibida de andar pela casa, de brincar e até mesmo de falar. A princípio há por parte da menina a aceitação de sua situação miserável, o que lhe impede de ir contra a realidade em que vive, aceitando passivamente todas as crueldades do preconceito e da desigualdade social contra ela. Entretanto, o texto traz também uma reviravolta da personagem.

Até então a única criança da casa, duas sobrinhas de Dona Inácia, duas garotinhas que por sua descrição (louras, ricas e possuidoras de brinquedos caros), representam o mundo burguês vem visitar a piedosa Tia e Negrinha é tratada como mais um “brinquedo”.

O conflito consciente em relação a sua condição e ao mundo, leva a pobre órfã a dialogar com si mesma, se questionando e refletindo acerca de sua condição como ser humano, levando a menina a externar seus pensamentos: Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo […] – É feita?… perguntou extasiada”. Nesse trecho, em que o autor coloca voz na boca de Negrinha pela primeira vez no conto, ela assume a consciência de toda criança e se sente gente: “Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma – na princesinha e na mendiga […] Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma”.  Trecho maravilhoso de trazer lagrimas este onde Negrinha percebe que ela não é um objeto mas sim um ser humano, com alma!

Lobato revela toda a sua genialidade neste conto, ao denunciar de modo claro e objetivo, através do contexto literário, o tratamento dado aos negros na época da Nova República, anunciando ao leitor o surgimento de uma nova realidade pautada na fome e na miséria.

Mesmo sendo uma ficção, Negrinha mostra, pelo chamado ‘buraco de fechadura’, como ficou a situação da maioria dos negros no período pós-abolição. Apesar de libertos por um decreto, eles permaneceram presos aos grilhões sociais, sem oportunidades, sem educação, sem qualquer amparo governamental para poderem se tornar membros produtivos ou iniciarem uma vida digna, sendo vistos ainda como meros serviçais na mentalidade de brancos reacionários. Dona Inácia, era uma dessas pessoas que continuou com o mesmo tipo de pensamento escravocrata.

Em resumo, o conto escrito Lobato há mais de cem anos, traz uma denúncia escancarada contra as elites brancas e à própria igreja, conivente com os maus-tratos, demonstrando assim toda hipocrisia contida nos bastidores da sociedade patriarcal da época. O racismo e o preconceito, são colocados lado a lado com a farsa, o sarcasmo, a tragédia e a compaixão.

Definitivamente, através de Negrinha, Monteiro Lobato presentou o povo brasileiro com um conto reflexivo e absolutamente antirracista.

 O LIVRO NEGRINHA

Para competir com o mercado, Monteiro Lobato lançou o livro Negrinha com capa simples e sem ilustração alguma, com a primeira edição sendo vendida ao preço de 2 mil e quinhentos réis, enquanto outros livros custavam, naquela época, quatro mil réis.

A segunda edição do livro foi lançada em 1922, ao preço de mil réis e incluiu os contos: Os negros e Barba-azul. Deveria ter incluído ainda o conto O despique, mas  o mesmo foi retirado e acabou sendo republicado anos mais tarde, no livro “Na antevéspera”, de 1933.

Em 1923 aconteceu o lançamento da terceira edição e foram acrescentados novos contos: Uma história de Mil anos; O fisco; Os pequeninos; A facada imortal; Apolicitemia de dona Lindoca; Duas cavalgaduras; O bom marido; Marabá; Fatia da vida; A morte do camicego; Quero ajudar o Brasil; Sorte grande; Dona Expedita; e Herdeiro de si mesmo. A obra passou então a somar vinte e dois contos.

Todas as três edições do livro foram publicadas pela “Monteiro Lobato & Cia. Editores”, vendendo juntas 12 mil exemplares.

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REFERÊNCIAS:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Negrinha

https://aedmoodle.ufpa.br/pluginfile.php/239401/mod_resource/content/1/Artigo%20-%20BREVE%20ESTUDO%20DO%20CONTO%20NEGRINHA%2C%20DE%20MONTEIRO%20LOBATO%20-%20NILSON.pdf

https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/11/26/negrinha-ndash-um-manifesto-antirracista-de-lobato

https://docplayer.com.br/12438922-Monteiro-lobato-vida-obra-2.html

https://pt.wikipedia.org/wiki/Negrinha#cite_note-1

https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/30693/1/ISRAEL%20LACERDA%20DO%20NASCIMENTO.pdf

O que significa adaptar uma obra?

(Kátia Chiaradia)

Quando soube que a bisneta de Monteiro Lobato estaria adaptando sua obra, estranhei. Estranhei porque eu já era pesquisadora de Lobato há mais de 10 anos e nunca havia imaginado que isso seria possível. Os herdeiros de Monteiro Lobato sempre foram muito receptivos às pesquisas acadêmicas, e prova disso é terem doado ao CEDAE da Unicamp, toda a biblioteca do autor, além de uma enormidade de outros documentos de pesquisa: cartas, fotografias, aquarelas, bilhetinhos e até um caderno de receitas de Dona Purezinha. E nesse tempo todo, Cleo Monteiro Lobato sempre foi uma pessoa das coxias e não do palco, que ficava reservado para seus pais e, evidentemente, seu bisavô.

Meu segundo estranhamento se misturava à sensação de incômodo que eu sabia exatamente de onde vinha: sou pesquisadora, e mexer em um texto literário, um clássico, não é algo bem-visto pela perspectiva dos estudos literários. Isso porque todo texto fala de seu tempo, do lugar onde foi escrito, das pessoas que viveram à época de sua concepção e daquelas que primeiramente o leram. Assim, ainda que os motivos de Cleo para adaptar a obra de Lobato me parecessem louváveis (na época, eu achava que ela queria retirar do texto expressões hoje entendidas como racistas, mas, mais à frente, fui entender melhor1) a ação em si ainda me confundia.

Porém, como pesquisadora, meu papel é buscar entender uma situação-problema por diversos prismas. Fazemos pesquisa para que nossos estudos alcancem a sociedade e possam tornar o mundo um lugar melhor e mais democrático, sobretudo quando é a universidade pública que nos impulsiona.

“O mesmo acontece com a literatura”, pensei. A literatura deve alcançar seus leitores, sem os quais ela sequer existe.

Quero dizer, com isso, que um livro infantil que não alcança as crianças é um livro que não tem razão de existir. Monteiro Lobato escreveu livros para as crianças e sobre elas. Ele não escreveu as histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo para pesquisadores, mas sim para que crianças pudessem morar nelas. E, como pesquisadora, meu papel é olhar para todo esse movimento de maneira investigativa: quanto de reconhecimento e identificação, seja consigo, com seu espaço ou com seu tempo, este livro pode proporcionar aos leitores? Quanto este livro facilitará que eles ampliem suas relações com o mundo? E quanto as afastará dele? Se a balança pende para causar dor em uma criança, isso precisa ser revisto.

A escola é o mundo de muitas crianças, por isso, não é aceitável que qualquer uma delas sofra em sala de aula, justamente no espaço em que ela deveria se fortalecer. Então, se a adaptação de que falamos aqui, cujo foco está em atualizar para hoje a mesma pujança que se lia na Tia Nastácia de um século atrás, essa adaptação é bem-vinda porque, repito, as obras do Sítio do Pica-Pau Amarelo foram escritas para as crianças, e não para nós, adultos. No Sítio, Tia Nastácia é a geradora da vida e a saciadora das fomes. De todas. Ela é quem abraça, acalma e faz rir, e é imprescindível que essa percepção da centralidade de Tia Nastácia alcance também as gerações de hoje. Se algumas frases sobre ela envelheceram mal e hoje são consideradas racistas, que sejam adaptadas para que o retrato dessa mulher doce, forte e inspiradora continue o mesmo. O texto mudou justamente para que se preserve a personagem.

Por fim, é claro que muitos de nós também querem “morar nelas”, nas historias, mas é preciso nos lembrarmos que “a casa” é pensada para elas, as crianças, as moradoras originais e por direito.

Dona Benta, a grande educadora do Sítio do Pica-Pau Amarelo

O estereótipo da vovó cansada, sempre sentada, perdida em seus bordados, que pouco se movimenta, mais escuta do que discute e que quando fala é para contar algum acontecimento vivido por ela no passado, foi totalmente ignorado por Monteiro Lobato ao criar a personagem Dona Benta.

É certo que lá em 1920, quando surgiu pela primeira vez, a personagem foi descrita pelo próprio criador como “uma triste velha, de mais de setenta anos, trêmula, quase cega, sem dentes, já no fim da vida”. Porém, onze anos mais tarde, em Reinações de Narizinho, Lobato refaz essa descrição, inclusive rejuvenescendo em dez anos a vovó que ganha um nome: Dona Benta.

Ao contrário do que a descrição introdutória possa sugerir, basta dar continuidade à leitura para identificarmos em Dona Benta, uma vovó cheia de energia, estimuladora da cultura, que dá importância e incentiva a fantasia, a imaginação infantil, as descobertas e aventuras de seus netos. Sem bronquear, ela ainda os ajuda a resolverem seus conflitos e perturbações mais íntimas, sem podar a criatividade dos netos, na maioria das vezes por meio das histórias contadas por ela.

Um olhar mais atento à literatura nos permite entender que Monteiro Lobato foi de fato um homem à frente de seu tempo, que acreditava na educação para resolver os problemas sócio-políticos e econômicos do país, fazendo questão de manter uma constante preocupação no incentivo do leitor a liberdade de pensamento e de ação. O autor percebeu a oportunidade de repassar ao seu público, através dos seus livros,  os seus ideais e pensamentos, contribuindo diretamente para a melhora da educação no Brasil.

Nessa esteira do pensamento lobatiano, nasce então Dona Benta, personagem que em muitos aspectos se assemelha e revela uma projeção do próprio escritor. Uma semelhança que começa pelo nome Benta, feminino de Bento, mas que vai diretamente até a personalidade, os pontos de vista e a evidente tentativa de Lobato em construir uma literatura capaz de situar a criança em seu próprio mundo, por meio da contação de histórias.

De acordo com a professora e pesquisadora Vera Maria Tietzmann Silva, é possível ver em Dona Benta uma projeção do lado sábio e bem comportado, de Lobato, que assim como a personagem criada por ele, também tinha um lado simples e outro erudito. O escritor também foi proprietário rural, um incondicional amante dos livros como Dona Benta, aberto a todas as áreas do saber e que fazia circular o conhecimento, se empenhando em compartilhar suas descobertas e leituras, principalmente com os leitores em formação.

A personagem, assim como o seu criador, consegue enxergar o mundo pelo olhar da criança e no momento de contar histórias abre mão da linguagem desnecessariamente adornada dos adultos, falando à criança de um modo absolutamente simples e didático, deixando aflorar a imaginação e o faz-de-conta. Essa leveza e a sabedoria de Dona Benta, fazem dela o instrumento perfeito para Lobato falar pela voz de sua personagem, encontrando nela a solução para a necessidade de oferecer às crianças, histórias escritas numa linguagem objetiva, clara, acessível, mais próxima possível do registro coloquial.

Não há qualquer exagero em afirmar que Dona Benta é na verdade uma mediadora do saber que se comporta de maneira semelhante ao próprio autor, educando e de um modo simples, despertando através da contação de histórias o gosto pela literatura, a necessidade de adquirir e expandir o conhecimento, sem cortar o interesse, o prazer, o senso crítico e questionador das crianças.

Ainda, na opinião da professora Vera Maria Tietzmann Silva, ao criar o Sítio do Pica-Pau Amarelo, Lobato transforma esse ambiente, onde vive Dona Benta, em uma nova modalidade de escola, que leva aos jovens leitores o conhecimento curricular pela via da ficção, retirando o peso autoritário de seu mediador, não mais o professor severo, mas a avó amiga, que dá ‘sabor ao saber’.

Todos esses detalhes reforçam a certeza de que a criação da personagem não foi por acaso. O escritor demonstra a clara intenção de revelar suas próprias ideias, numa época em que a opinião masculina se sobrepunha à feminina, em que as mulheres não tinham voz. Lobato, na contramão, possibilita que Dona Benta fale em seu lugar, revelando muitos conhecimentos e propagando valores por meio da personagem.

Para a professora e pesquisadora Regina Machado, o ato de contar histórias quebra as relações tradicionais com as crianças, criando um outro contato humano, num tom mais colorido, divertido, vibrante e misterioso.

Dona Benta aparece no Sítio do Pica-Pau Amarelo como uma verdadeira educadora, que por meio de suas leituras, com a entonação certa, o vocabulário acessível às crianças, além de ensinar e estimular o hábito da leitura, evidencia a ideia do escritor de que não há assunto somente para criança ou somente para adulto.

Lobato e Dona Benta, são na verdade leitores que formam leitores e que há mais de cem anos, representam a ideia de que a transformação do mundo passa essencialmente pela educação, que precisa ser prazerosa e voltada para a mente aberta da criança, assim como as obras do criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo.

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REFERÊNCIAIS

https://anais.unicentro.br/seped/2010/pdf/resumo_182.pdf

MACHADO, Regina. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São Paulo: DCL, 2004.

SILVA, Vera Maria Tretzmam. Literatura Infantil Brasileira: um guia para professores e promotores de leitura.