Joyce Campos e a difícil arte de ser neta de Monteiro Lobato

“Durante um inverno… cheguei a cometer uma das maiores travessuras da minha vida. Eu tinha colocado água com milho em uma lata de goiabada para endurecer no frio e virar uma espécie de “rapadura”. No dia seguinte, quando saí para checar se estavam prontas, vi as roupas penduradas no varal inteiramente congeladas devido à baixa temperatura. Imediatamente comecei a dobrar peça por peça sem deixar nada intacto. Foi uma maravilha, fazia um barulho bonito, crocante, plec, plec, plec. … Assim quebrei todas as roupas que estavam penduradas, lençóis, toalhas, vestidos, camisas, enfim… Pouco mais tarde minha avó se lembrou da roupa e saiu correndo com um enorme cesto para recolher. Mas era tarde. Estava tudo quebrado, rasgado, imprestável.

Essa historia aconteceu de fato e é uma das lembranças de Joyce Campos, única neta do escritor Monteiro Lobato, e segundo ela, “uma das profissões mais difíceis do mundo”. A história dessa relação entre a neta e seu avô, está contada na página 32 do livro “Juca e Joyce – Memórias da neta de Monteiro Lobato”, onde, em 2007, Joyce, por meio de depoimentos à escritora, jornalista e historiadora Márcia Camargos, relatou suas memórias de sua convivência com seu avô, Juca, como era chamado em família. O livro revela através dos relatos de Joyce, um lado mais íntimo de Lobato, como seus pratos prediletos, o que ele fazia nas horas de lazer, a sua participação na educação dos filhos, suas leituras de cabeceira, a relação com a esposa, suas manias, seus passatempos e a sua paixão pela pintura e pela fotografia.

Filha única de Martha Lobato Campos, a primogênita do escritor, com Jurandyr Ubirajara Campos, que na época trabalhava como desenhista publicitário nos escritórios da Pirelli e era ilustrador do The New York Times. Joyce nasceu nos Estados Unidos, em 1930, no período em que o avô trabalhava como adido comercial naquele país. A ideia da família era talvez permanecer por lá, mas quis o destino que, por conta da Revolução que explodiu naquele ano, eles retornassem todos ao Brasil, quando a pequena Joyce tinha apenas dez meses de vida. De volta ao Brasil, a família toda se estabeleceu no bairro da Aclimação, na zona sul da capital, onde os avós, Monteiro Lobato e Purezinha, também se instalaram.

Joyce foi uma menina extremamente travessa, esperta, curiosa e imaginativa que fazia mil estripulias, e que gostava de ouvir as histórias que o avô costumava inventar e contar para ela. Em 1933, com três anos, Joyce foi morar em Campos do Jordão, no interior de São Paulo, com a avó Purezinha, sua tia Ruth e seu tio Guilherme, diagnosticado com tuberculose, já que o clima local ajudaria no tratamento da doença. Seus pais permaneceram em São Paulo e por conta dos inúmeros compromissos de trabalho, Monteiro Lobato ia e vinha regularmente. Esse período, segundo ela, foi o melhor de sua infância, pois estava junto dos avós que faziam todas as suas vontades, fazendo jus à frase: “na casa do vovô e da vovó pode tudo!”.                                  

Joyce conta, em seu livro de memórias como neta de Lobato, que Monteiro Lobato costumava dormir poucas horas e tinha o hábito de acordar bem cedo, quase de madrugada para escrever. Joyce, sempre que estava com os avós, dormia entre os dois na mesma cama, onde eles conversavam e ela ouvia Purezinha contar o que tinha acontecido durante o dia, as novidades, quem tinha vindo visitar e Lobato contava seus planos mirabolantes, muitas vezes interrompidos sob um ataque de riso de ambos. Segundo a memória de Joyce, sua avó, Purezinha, tinha uma risada gostosa e quando contava uma caso era muito divertido, pois ela deixava tudo muito mais interessante. Até os fatos presenciados por ela, Joyce, ficavam irreconhecíveis e muito melhor, contados por sua avó. Curiosamente, Joyce aprendeu essa mesma habilidade, a de transformar qualquer caso numa história melhor do que o ocorrido.

Joyce gostava de ouvir atentamente as histórias contadas por Lobato, que inclusive lia trechos de livros que ainda estava escrevendo e ocasionalmente lhe perguntava sua opinião. Assim como o avô, a menina realmente era muito criativa e uma de suas ideias foi incorporada ao livro A Reforma da Natureza, publicado em 1939. Foi ela quem sugeriu colocar torneirinhas para tirar o leite da vaca, ideia que teria surgido em uma dessas conversas que Joyce costumava ter com o avô antes de dormir. Naquela época era comum tomar leite tirado diretamente da vaca, quentinho e Joyce contava que morria de nojo, pois costumava ir ao curral de manhã cedo para ver tirarem o leite e não gostava do cheiro, nem da sujeira.

De volta à São Paulo, em 1936, após a recuperação de Guilherme, Joyce passava a maioria do tempo na casa dos avós, onde brincava com sua melhor amiga e vizinha, Maiah Pinsard. Em entrevista à Livraria da Folha, no estande da Globo Livros, durante visita à 21ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em 2010, Joyce contou que Maiah e ela costumavam brincar de casinha dentro dos caixotes abarrotados de livros e lá liam o que deviam e o que não deviam no porão da casa de Lobato, sempre cheio de livros. Desde pequenas, as amigas inseparáveis tiveram mil aventuras, foram a bailes, casaram, tiveram filhos e permaneceram amigas a vida toda. Joyce gostava de contar, com bom humor, uma das típicas aventuras que tiveram quando tinham uns onze ou doze anos: as duas decidiram visitar o jardim zoológico que existia no Jardim da Aclimação para ver os animais. A uma certa altura, para se divertirem, tiveram a ideia de provocar o urso em sua jaula com um pedaço de pau. Quando estavam nessa brincadeira de cutucar o urso, achando tudo muito divertido, repentinamente, o urso arrancou o pedaço de pau que Maiah estava segurando e “nhoc!”, mordeu a mão inteira de Maiah. Joyce, não entendendo o que estava acontecendo, gritava: “Larga o urso Maiah! Larga o urso!”. Felizmente, o animal abriu a boca para morder melhor a mão e Maiah caiu sentada. As meninas bem que tentaram ir a uma farmácia para fazer um curativo na mão, mas Joyce contava que o farmacêutico olhou horrorizado para a mão ensanguentada e se recusou a atendê-las. O jeito então foi ir para casa e pedir para Jurandyr fazer o curativo. O que salvou a mão de Maiah, foi um anel que ela tinha, o urso acabou mordendo o anel e assim não conseguiu decepar o dedo de Maiah.

A intrépida Joyce aprendeu com o pai, desde cedo, a não levar desaforo para casa. Filho de portugueses, com seis irmãos, Jurandyr era muito bravo. Naquele tempo tinha aquela coisa: “[…] brigou e apanhou lá fora, vai apanhar em casa também!” e Jurandyr praticava esse tipo de educação. Seu pai a ensinou a ler, aos 5 anos, com o livro Histórias de Tia Nastácia. Essa foi uma experiência traumática, contou Joyce em seu livro, porque seu pai costumava puni-la com um coque na cabeça toda vez que ela errava a leitura. Joyce costumava lembrar, em conversas, que nos seus tempos de criança apanhou de régua na palma da mão (palmatória) e ficou de joelhos no milho, no canto da sala, na escola. Essas eram práticas educacionais comuns na época.

Desde criança, por natureza ou pela educação que recebia em casa, Joyce se mostrou uma autêntica líder. Comandava a turma da rua, onde era a única menina, batia nos outros meninos se eles questionassem sua liderança, subia em árvores, se machucava com frequência, mas nunca reclamava.

Joyce cresceu num período de extrema atividade de Lobato. O escritor voltou de sua temporada nos EUA determinado em ajudar o Brasil a se tornar um país de primeiro mundo, independente energeticamente e passou a década de 1930, até 1941, investindo todas as suas energias e economias na luta pelo petróleo. Durante esta década, Lobato lutou pela liberdade de expressão e contra o governo ditatorial de Getúlio Vargas. Além disso, neste período, escreveu 23 livros, traduziu 32 obras da literatura internacional e abriu três companhias de petróleo. Também neste período, Guilherme, filho mais novo, faleceu, em consequência da tuberculose, com apenas 23 anos, em 1938. E finalmente, em 1941, Lobato foi preso por crime de “lesa-patria”, e sua adaptação do livro Peter Pan foi apreendido e destruído por causar má influência nas crianças.  Joyce cresceu durante essa tumultuada fase da vida do avô e tudo isso teve um grande impacto em sua personalidade. Descobriu cedo que não era uma tarefa fácil ser neta de uma personalidade tão famosa. Em qualquer escola, ela sempre teve que enfrentar e se defender de acusações de Lobato ser comunista, representando um ‘perigo para a sociedade’.

Na infância, Joyce estudou por um ano na American Graded School of São Paulo, pois Lobato e Jurandyr achavam muito importante saber falar inglês. Apesar de não ter o sobrenome Lobato, porque seu pai optou por colocar apenas o sobrenome dele, logo os professores descobriam o seu parentesco com o escritor e passaram a exigir dela um desempenho muito melhor nessa matéria. Além da exigência por boas notas em português, Joyce se lembrava de ter tido uma professora dessa matéria, chamada dona Olga, que era muito fã do escritor e resolveu fazer uma montagem do Sítio do Pica-Pau Amarelo, para ser apresentada no encerramento do ano letivo. Ela foi escalada para interpretar o papel de Tia Nastácia e, por desenhar bem, foi também responsável pelos desenhos e figurinos da peça. Porém, o mais difícil talvez tenha sido o fato dela ter que encarar o avô na plateia, convidado de honra para prestigiar a apresentação.

Da escola Americana, Joyce foi para o Mackenzie, e no colegial era chamada de “tovarish”, que significa camarada, em russo, porque as pessoas achavam que ela era neta de um comunista. Teve que aprender a se defender a defender a reputação do avô. Depois de terminar o secundário, cursou e se formou em arquitetura pela Universidade Mackenzie. Curiosamente, nenhum dos quatro filhos de Monteiro Lobato fez faculdade. O mais comum para as mulheres na década de 1940 e 1950 era seguir carreira como secretária ou professora de primeiras letras. Joyce foge ao padrão familiar, e não só cursa faculdade mais escolhe ser arquiteta e não professora. Ela foi uma das cinco mulheres da sua turma no curso de Arquitetura, que tinha outros sessenta homens. Após formada, Joyce trabalhou em diversos escritórios de arquitetura e em 1958, com 28 anos, se casou com o engenheiro Jerzy Kornbluh (2/12/1930 – 15/11/2015) – que preferia ser chamado de ‘Jorge’ – judeu polonês não religioso, refugiado de guerra, que havia chegado com os pais e a irmã, ao Brasil aos 11 anos, fugindo do Holocausto na Europa.

Neste momento, a menina que gostava de ouvir as histórias contadas pelos avós, que amava viajar e criava suas próprias aventuras na vida real, saiu de cena, dando lugar, a partir do casamento, a uma esposa dedicada em apoiar o marido e a fazer tudo para ajudá-lo a progredir na carreira. Dessa união, nasceu Cleo, filha única do casal. Durante muitos anos Joyce se dedicou ao marido e a filha, costurando e pintando todas as roupas de Cleo por muitos anos, aprendendo a cozinhar para servir jantares para os negócios de Jorge e assumindo a função de matriarca da família, a pessoa que todos perguntam a opinião, a pessoa que resolve todos os problemas e é o pilar da família.

Em 1971, uma tragédia abala a família. Ruth, filha mais nova de Lobato, se suicida. Joyce, o pilar emocional da família, assume este peso e seu marido, Jorge começa a assumir o papel de representante da família para os negócios relacionados com a obra de Lobato.

Voltando um pouco atrás…depois da morte de Lobato em 1948, Ruth, e Purezinha assumiram a missão de promover o legado do escritor, mantendo viva a sua memória.  Juntas e com a ajuda dos amigos do escritor, elas conseguem organizar a primeira Semana Monteiro Lobato, na cidade de Taubaté, onde Lobato nasceu. Purezinha fez uma doação de roupas e móveis, além de livros e manuscritos de Lobato para a Biblioteca Monteiro Lobato em São Paulo. Ruth e Purezinha estabeleceram o legado de Monteiro Lobato, e trabalharam incansavelmente até o falecimento de Purezinha em 1959. Neste período, com autorização delas, foi realizado o primeiro filme baseado na obra infantil de Lobato, O Saci e também o primeiro programa de TV baseado na obra infantil, dirigido por Julio Gouveia e Tatiana Belinky, amigos de Purezinha e Lobato, indo ao  ar pela extinta TV Tupi.

Após a morte de Purezinha em 1959, Martha passou a ajudar Ruth, fazendo a parte pública, dando entrevistas para programas de TV e para os jornais, enquanto Ruth se concentrava na parte dos negócios. Martha e Ruth tocam os negócios Durante vários anos até a morte de Ruth em 1971 quando Jorge e Joyce assumem este papel.

Em 1977 é assinado o contrato para a produção do primeiro seriado do Sítio do Pica-Pau Amarelo a cores, na TV Globo. Aos poucos, com o passar do tempo, Martha reassumiu os compromissos que fazia antes e junto com Joyce, passar a fazer a parte pública juntas, enquanto em 1995 Jorge passou a representar oficialmente a família Monteiro Lobato através da Monteiro Lobato Licenciamentos. A empresa passou a responder, com o parceiro comercial, Álvaro Gomes, pelos contratos com a TV Globo para a produção da segunda série do Sítio do Pica-Pau Amarelo para a televisão, no ano 2001 e de 2012 e por todos os licenciamentos.

Ao lado do marido, com Martha já de certa idade, Joyce passou a cumprir a face pública de representar a família integralmente. Ela tinha agora uma agenda intensa, repleta de compromissos que continuou a exercer até seus 85 anos de idade. Joyce regularmente dava entrevistas aos mais diversos veículos de comunicação, a participava de inaugurações de orfanatos, escolas e bibliotecas, fazia doações de livros, além de opinar nas fantasias dos personagens do seriado, inclusive lendo e aprovando todas as sinopses dos episódios da série na TV Globo, especialmente a de 2001. Joyce se manteve sempre ativa, participando do Programa do Jô e do Bial na TV Globo entre outros, participando de todas as Semanas Monteiro Lobato, em Taubaté ou no Cemitério da Consolação, opinando sobre a qualidade e o design dos produtos licenciados e sempre ajudando estudantes e pesquisadores quando a procuravam pedindo informações sobre seu avô.

Em 1998, após uma minuciosa pesquisa de anos em diversos  acervos de diversas instituições e na casa da família, em São Paulo, os historiadores Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta, lançam o livro Furacão na Botocúndia que foi acompanhado de uma exposição de mesmo nome, em comemoração aos 100 anos do nascimento de Lobato. Joyce e o marido rodaram as capitais do Brasil, junto com os autores da obra, levando o conhecimento da vida e obra de Lobato para o Brasil inteiro.  Desta experiência nasceu uma grande amizade entre os quatro, especialmente entre Marcia e Joyce, e convidada por Marcia, Joyce dá uma série de depoimentos de como é ser neta de Monteiro Lobato que se tornam o livro “Memórias da neta de Monteiro Lobato – Juca e Joyce”, lançado pela Editora Moderna em 2007 mencionado no início deste artigo.

Em 1999, a convite da professora Marisa Lajolo, Joyce e Jorge visitaram a exposição “Vendo e Escrevendo Monteiro Lobato“, na sede da Universidade de Campinas, a Unicamp. Após conhecerem as dependências do CEDAE – Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio” – e o trabalho desenvolvido naquele local, a família decidiu doar à Universidade, o acervo deixado pelo escritor e guardado há anos na casa da família. A intenção era de abrigar este acervo num espaço fisico onde o mesmo seria conservado e preservado. Muito importante também era o publico e os estudiosos de Lobato terem sempre acesso a este material precioso. A Unicamp criou, então, o Fundo Monteiro Lobato dentro do CEDAE e a doação foi consolidada no dia 20 de julho de 2000. No acervo existem diversos documentos das mais diversas fases vividas por Lobato, seja como escritor, editor, adido comercial, desenhista e empreendedor. São documentos pessoais, vasta correspondência do período de namoro com Purezinha e outras trocadas com amigos; escritores, editores, etc.; além de livros; originais manuscritos e datilografados de contos, crônicas, literatura infantil, traduções, desenhos, aquarelas e fotografias de sua autoria. É importante destacar essa nobre atitude da família do escritor, que com esse gesto permitiu a qualquer pessoa interessada em saber mais sobre o pai da literatura infantil brasileira, ter acesso a documentos importantes referentes ao escritor.

Joyce Campos Kornbluh, faleceu no dia 26 de janeiro deste ano, aos 93 anos, a última descendente de Monteiro Lobato que teve contato direto com o pai da literatura infantil brasileira. Até os seus ultimo dias Joyce foi generosa com seu tempo, com suas memórias de Lobato, ajudando pesquisadores,  estudantes, dando autorizações para uso de imagem e inclusive apoiando a sua filha Cleo na nova versão atualizada do livro “Reinações de Narizinho’”.

Entre tantas qualidades apontadas pela historiadora Márcia Camargos, que citamos no início deste artigo, vale o destaque para o resumo sobre quem foi Joyce Campos: “uma observadora privilegiada, que presenciou a vida de Monteiro Lobato, com uma intimidade que os historiadores não têm”.

Só tive noção da dimensão da obra dele depois de sua morte. A gente admira o avô porque é avô, não porque é Monteiro Lobato” – Joyce Campos.

Se o universo lobatiano nos permite sonhar, quem sabe ambos não estejam agora a passear pelas terras do Sítio do Pica-Pau Amarelo, em meio a todo aquele cenário encantador, cercados pelos personagens que encantaram tantas gerações.

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REFERÊNCIAS:

Luto: Me ensinou tudo o que uma criança não podia fazer, dizia neta sobre Lobato (sampi.net.br)

Folha.com – Livraria da Folha – Neta de Monteiro Lobato relembra convivência com avô em visita à Bienal do Livro – 18/08/2010 (uol.com.br)

Jornal da Unicamp

https://cedae.iel.unicamp.br/fundos/MLb_Catalogo.pdf

Entrevista com Cleo Monteiro Lobato