Quando Teseu Saiu De Férias: Tia Nastácia Versus O Minotauro

Daniella Amaral Tavares
“O trigo venceu a ferocidade do monstro de guampas”. (LOBATO, 1965, p. 217).

No final de O Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato (1939), tudo parecia correr bem com a fabulosa festa de casamento de Branca de Neve com o Príncipe Codadade nas terras de D. Benta. E o banquete, então, um assombro! Comandado por Tia Nastácia, que tinha ao seu dispor mais de cem ajudantes para assar mil e trinta e sete faisões, (LOBATO, 1965a, p. 174-175), era digno das festas mais luxuosas das Mil e Uma Noites.!

Mas o casamento não aconteceu conforme o esperado, pois foi interrompido pelo ataque avassalador de monstros míticos, que não foram convidados, e por isso decidiram arruinar a festa. Entre eles estava o Minotauro, a criatura do labirinto de Creta, acompanhado de um bando que incluía os Centauros, Cérbero, a Hidra de Lerna (que havia dado uma surra em D. Quixote) e a Quimera (LOBATO, 1965a, p. 181). !

Quando este tropel caótico invadiu a cozinha de mármore, Nastácia foi levada, sem que ninguém soubesse do seu paradeiro (LOBATO, 1965a, p. 182). E assim, em meio à aflição geral, Pedrinho decide organizar uma expedição para salvar a quituteira, sendo recebido com alegria pela Emília: “Bis-bravo! – berrou batendo palmas – Isso é que é falar! Avante, avante! Toca a salvar tia Nastácia!” (LOBATO, 1965a, p. 189). Após este desfecho, somos levados ao livro O Minotauro (1939), que começa exatamente com os preparativos para uma viagem à Grécia moderna, no navio “Beija-Flor das Ondas” e de lá, graças a um mergulho na imaginação, aporta na Grécia do tempo de Péricles. !

No entanto, não era neste mundo onde Nastácia devia ser buscada, mas sim na “Grécia Heroica”, o tempo dos grandes heróis, como Hércules e Teseu, e para lá partem Pedrinho, Emília e Visconde, enquanto Dona Benta e Narizinho permanecem na Atenas de Péricles. (LOBATO, 1965b, p. 85). !

Mas em qual lugar e nas mãos de qual monstro estava a cozinheira? Para a mordaz boneca de pano, ela teria sido devorada pelo monstro de Creta: “Para mim o Minotauro a

devorou – disse Emília. – As cozinheiras devem ter o corpo bem temperado, de tanto que lidam com sal, alho, vinagre, cebolas. Eu, se fosse antropófaga, só comia cozinheiras. Narizinho teve vontade de jogá-la aos tubarões.” (LOBATO, 1965b, p. 11). !

Apesar do equívoco sobre a referida morte, Emília estava em parte certa: o Minotauro havia levado a personagem para o labirinto e lá ele engordava, feliz, às custas dos famosos bolinhos, esquecido da sua antropofagia1. O paradeiro é confirmado numa consulta ao Oráculo de Delfos, que revela, através da sacerdotisa que: “O trigo venceu a ferocidade do monstro de guampas.” (LOBATO, 1965b, p. 217). Essa fala misteriosa é imediatamente interpretada por Emília, para quem o “trigo” significaria Tia Nastácia, pois ela,

[…] como cozinheira, lida muito com trigo, farinha de trigo, massa de trigo, pastéis, bolinhos, etc. E com as coisas gostosas que ela fez com a farinha de trigo “venceu”, isto é, amansou a “ferocidade do monstro de guampas” que não pode ser outro senão o Minotauro. De todos os monstros que invadiram o palácio do Príncipe Codadade só havia um de guampas, ou chifres: o Minotauro. (LOBATO, 1965e, p. 217).

De fato, a boneca está certa e quando o grupo entra no labirinto de Creta, guiado pelos carretéis de linha de Emília, encontram o Minotauro sentado em seu trono, mastigando uma montanha de bolinhos, e contando com uma aparência nada assustadora:

[…] o monstro estava gordíssimo, quase obeso, com três papadas caídas; o seu corpanzil afundava dentro do trono. Que teria acontecido? (LOBATO, 1965b, p. 221).

Assim, este híbrido de homem e touro, antes o terror da ilha de Creta, foi transformado num ser apático (e vegetariano!) graças à Tia Nastácia, uma personagem normalmente representada como frágil e pouco afeita a aventuras, que enfrenta o monstro com as armas que domina: suas habilidades culinárias, as mesmas que encantaram São Jorge e D. Quixote em outros livros. !

Mas se ela dominou o monstro, onde estava Teseu, o herói que executa esta tarefa no mito? É interessante apontar que a versão lobatiana para o mito do Minotauro coloca em evidência apenas um personagem da narrativa tradicional: o próprio Minotauro, cuja prisão não abriga mais um monstro devorador de carne humana, mas um glutão pacato, vencido pelos bolinhos. Aqui, Teseu e Minos, citados brevemente (LOBATO, 1965b, p.106), não participam nos acontecimentos vividos pelos “picapaus”2 em Creta. Os jovens atenienses, que seriam ali devorados, também estão ausentes, assim como os personagens Dédalo, Dioniso e Ariadne, a princesa aqui substituída pela boneca de pano e seus carretéis de linha. !

Esta escolha é condizente com uma questão presente nos textos infantojuvenis lobatianos – a vitória da inteligência sobre a brutalidade. Em Os Doze Trabalhos de Hércules (1944), este semideus pondera sobre a questão: “Sim, refletia consigo o herói. Eles representam a Inteligência e eu só disponho da Força. Em muitos casos a Força nada vale e a Inteligência é tudo […]” (LOBATO, 1965c, p. 152). !

Já Nastácia, de modo diverso a outro herói, Teseu, não entrou no labirinto confiante em sua força e estava apavorada com a criatura que “De vez em quando punha pra fora uma língua deste tamanho e lambia os beiços.”, mas poupou a vida dela, porque “[…] estava com a barriga cheia […]” (LOBATO, 1965b, p. 226). Ao contrário de Hércules e Teseu, a personagem descobriria que seu talento como quituteira também podia mudar o rumo dos acontecimentos. Assim, na cozinha do monstro, certa de seu fim e saudosa dos “picapaus”, ela teve a ideia de fazer bolinhos pela última vez e tantos fez que encheu uma peneira. Foi a sua salvação e vitória sobre o flagelo da juventude de Atenas! !

No no dia seguinte, o Minotauro, faminto, se aproximou dela e tendo visto a peneira cheia de bolinhos, provou um, outro, e mais tantos que engordou a ponto de não mais caminhar até a cozinha (LOBATO, 1965b, p. 227). Não era, portanto, necessário matar o monstro para derrotá-lo, mas ele podia ser “domado” por conta da sua paixão pelos quitutes – o que é um contraponto ao mito alinhado com as convicções do autor. Sem a violência da narrativa tradicional, o monstro de Creta “Acabou completamente manso. Esqueceu até a mania de comer gente.” (LOBATO, 1965b, p. 227).!

As substituições do autor, carregadas de humor sutil, nos conduzem a outra reflexão – o uso da paródia como meio de diálogo com o mito, recurso que simultaneamente alude à versão clássica e se desvia dela. Se de um lado temos uma criatura que devora carne humana crua, do outro encontramos um “homem-touro” mais humano, que dispõe de uma cozinha equipada com fogão, frigideiras e os ingredientes necessários para o preparo dos famosos bolinhos (LOBATO, 1965b, p. 222). Além disso, a “rebeldia” em relação ao texto clássico (SANT’ANNA, 2002, p. 32) aparece também no episódio do Oráculo de Delfos – em Plutarco, Teseu consulta o Oráculo antes de partir para Creta: “Pelo que se conta, o deus de Delfos ordenou-lhe por intermédio de um oráculo que tomasse Afrodite como guia e companheira de viagem”. (PLUTARCO, 1991, p. 31). Já em O Minotauro, como vimos, Lobato não apenas troca o conselho do Oráculo sobre a Afrodite (a deusa do amor) pela indicação do destino de Tia Nastácia, mas também muda a vitória de Teseu sobre o Minotauro para as mãos habilidosas da quituteira. !

Ao optar por colocar a astúcia no lugar da violência, substituindo uma morte sangrenta3 por uma derrota pacífica, O Minotauro também reconfigura o destino de uma personagem, aparentemente tão vulnerável nas mãos do monstro: como a Sherazade das Mil e Uma Noites, que todas as noites escapa da morte ao contar histórias para o rei, nossa heroína cria delícias todos os dias para obter sua salvação.


1 A versão mais conhecida do mito do Minotauro, presente em uma das narrativas de Plutarco (1991, p. 28-34), conta a história de um ser, meio homem meio touro, alimentado exclusivamente de carne humana e aprisionado desde o seu nascimento, por ordem do rei Minos, num labirinto construído pelo arquiteto Dédalo. A cada nove anos, o rei cretense exigia que a cidade de Atenas lhe enviasse, como tributo pela morte do príncipe Androgeu, sete rapazes e sete moças que seriam devorados pelo Minotauro. Na época do pagamento do terceiro tributo, Teseu, príncipe e herói ateniense, partiu para Creta, sob a orientação do Oráculo de Delfos, para derrotar o Minotauro. Guiado por um novelo dado por Ariadne, filha de Minos, ele consegue entrar no labirinto, matar o monstro e sair de lá para, em seguida, fugir com a princesa, que é abandonada na ilha de Naxos, onde é encontrada pelo deus Dioniso, com quem se casou.


2 “Picapaus” é uma maneira utilizada por Monteiro Lobato para se referir aos personagens que vivem no Sítio do Picapau Amarelo.


3 Num dado momento de Os Doze Trabalhos de Hércules (1944), Emília critica os acessos de fúria do herói, a quem apelidou de “Lelé”: “Esse seu gênio exaltado não dá certo, Lelé. Por qualquer coisinha fica fora de si, enxerga tudo vermelho e lá vem a hecatombe […] O bom sistema é o dos americanos nas fitas de cowboys. Quando chega a hora, o pega é tremendo, é dos que fazem a gente se torcer […] Mas ninguém morre! Era o que você devia fazer aqui […] Que direito tem uma criatura de tirar a vida de outra – não é mesmo, Visconde?” (LOBATO, 1965c, p. 166).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo e A reforma da natureza. São Paulo: Brasiliense, 1965a. (Obras completas de Monteiro Lobato, 2a série, Literatura infantil, v. 12).

______. O Minotauro. São Paulo: Brasiliense, 1965b. (Obras completas de Monteiro Lobato, 2a série, Literatura infantil, v. 13).

______. Os doze trabalhos de Hércules. São Paulo: Brasiliense, 1965c. (Obras completas de Monteiro Lobato, 2a série, Literatura infantil, v. 16).

PLUTARCO. Vidas Paralelas. São Paulo: Paumape, 1991. v.1.
SANT ́ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase e cia. 7. ed. São Paulo: Ática, 2002.

De Lobato a Mazzaropi, o Jeca inspira e provoca o Brasil

A personificação caricata do homem do campo do início do século XX, salta do imaginário lobatiano para as telas do cinema e conquista o grande público através das interpretações hilárias de Amácio Mazzaropi, que encarnou o personagem Jeca Tatu, criado por Monteiro Lobato, a partir de 1959.

O caipira simplório, ingênuo e preguiçoso, apareceu pela primeira vez em um texto do escritor publicado como um artigo no jornal O Estado de S. Paulo, em 1914, intitulado “Velha Praga”. Mas foi a partir do livro Urupês que o Jeca consolidou sua fama para chegar às telas do cinema, materializado na figura de Mazzaropi, vestindo camisa xadrez, chapéu de palha calça pula brejo e pés descalços.

O personagem foi descrito por Lobato, como o caipira “abandonado à própria sorte, vítima da fome que lhe parecia natural e imutável – exceto se ocorresse um lance de muita sorte ou divina intervenção” – sendo prisioneiro de uma ignorância sem fim. Esse era o fiel retrato do Brasil no inicio do século passado, ainda majoritariamente rural naquela época, que o escritor atacava com doses de sarcasmo para ver se mudava essa triste realidade.

Muitas histórias podem ser contadas para remontar a origem do Jeca Tatu criado por Monteiro Lobato e o personagem eternizado por Mazzaropi. Porém a que ficou gravada no imaginário popular foi sem dúvida a do Jeca Tatuzinho, escrita em 1924 para ensinar noções de higiene e saneamento às crianças, e que foi adaptada no ano seguinte para o folheto publicitário do Biotônico Fontoura, um medicamento que se popularizou em todo o país como uma poderosa vitamina para que as crianças crescessem fortes e sadias, passando de geração após geração. Essa foi inclusive, a primeira parceria entre a indústria farmacêutica e a indústria de remédios no Brasil.

Segundo a escritora Marisa Lajolo a história desse personagem está diretamente ligada a biografia do escritor, que herdou do avô a fazenda Buquira, no Vale do Paraíba, em São Paulo, se tornando um fazendeiro cheio de ideias contemporâneas, como modernizar a agricultura e a pecuária. Mas modificar estruturas existentes e mexer com costumes arraigados nunca foi uma tarefa fácil, principalmente naquela época. A ousadia de Lobato  aliado a pratica das queimadas e especialmente uma estiagem das mais fortes levam Lobato a escrever uma carta para o jornal O Estado de S. Paulo onde “cria a figura do Jeca Tatu para representar o caipira daquele período”. Em seus textos, Lobato expõe sua visão de que o trabalhador rural, o camponês, eram preguiçosos demais para mudar tanto a agricultura como seu próprio mundo, atribuindo a eles a responsabilidade pelos problemas do campo.

Ainda de acordo com Lajolo, “Lobato é implacável na desqualificação de toda cultura caipira, de suas manifestações artísticas à sua linguagem e às suas práticas econômicas”.

Ligados a um contexto histórico e sociológico, é interessante observar as relações entre autor e personagem diante das transformações que aconteciam no Brasil desde o final dos anos de 1890, em especial as campanhas sanitaristas iniciadas em 1904, sob a coordenação do médico e pesquisador Oswaldo Cruz, para facilmente compreendermos as contradições internas do país e as mudanças que Lobato imprimiu ao seu personagem.

Foi assim que o Jeca Tatu, a figura do caipira, passou de responsável pelo atraso e pela estagnação do Brasil agrário, para a condição de vítima da precariedade da saúde pública. E foi nesse momento que o escritor passou a se envolver totalmente em campanhas de saúde contra as verminoses, criando o personagem Jeca Tatuzinho para ensinar noções de saúde e saneamento às crianças.

Esse Jeca Tatu de Monteiro Lobato entrou definitivamente na vida de Amácio Mazzaropi em 1958, dez anos após a morte do escritor, quando o Instituto de Medicamentos Fontoura cedeu a ele os direitos autorais da obra do escritor, para que sua produtora, a PAM Filmes pudesse produzir o filme Jeca Tatu, uma releitura do personagem lobatiano que foi interpretado pelo próprio ator, que também dirigiu a produção ao lado de Milton Amaral.

De acordo com Mazzaropi, que também era de Taubaté, o Jeca Tatu de seu filme, lançado em 1959, foi de fato uma homenagem ao personagem criado por Monteiro Lobato, que ele conheceu pessoalmente em 1943, quando tinha 31 anos de idade, na extinta Radio Tupy de São Paulo.

É bem verdade que a construção do seu caipira começou antes do filme ser lançado e veio do gosto pela vida no campo, que ele herdou do avô Amácio Mazzaropi, um imigrante italiano que se fixou no estado do Paraná. Foi essa afeição pelo campo que o levou a pesquisar no interior do Brasil o personagem de calças curtas, canelas descobertas, botinas, fala arrastada, e que fez nascer o próprio caipira Mazzaropi. Outra influência foi a do circo e das peças que que tinham a figura do caipira como protagonista, e da inspiração na dupla Genésio & Sebastião Arruda que fazia sucesso na época.

Mas definitivamente, foi com o Jeca Tatu que Mazzaropi conseguiu completar o tipo e entrar definitivamente no universo da cultura caipira. Do personagem original de Monteiro Lobato, ele manteve praticamente tudo: o caboclo pobre e preguiçoso, mas de bom coração, retirando apenas o vício da bebida e acrescentando a astúcia. Como Jeca Tatu, ele fez os filmes Tristeza do Jeca; O Jeca e a Freira; Uma Pistola para Djeca; Jeca, o Macumbeiro; Jeca Contra o Capeta; Jeca, um Fofoqueiro no Céu; Jeca e Seu Filho Preto e Jeca e a Égua Milagrosa.

Assim como nos tempos de Lobato, o Brasil de Mazzaropi nos anos de 1950, vivia um pais ávido por crescimento e desenvolvimento no período pós-guerra, o que serviu para resgatar a ideia de modernização nacional, já defendida por Monteiro Lobato anos atrás.

Outro fator interessante, é que o protótipo caipira incorporado por Mazzaropi ganhou as telas do cinema para enfrentar o projeto nacionalista de Getúlio Vargas, que buscava consolidar o samba e a cultura carioca como a identidade nacional. Esse desejo era traduzido no cinema, através de personagens tipicamente urbanos como o malandro, a mulata, o sambista, o favelado, entre outros. Nesse contexto, o Jeca de Mazzaropi passou a brigar pela audiência do cinema dominado então pelas chanchadas da Atlântida, cujas personagens, tradutoras de um espírito da malandragem carioca, possuíam determinadas características de modernidade ligadas à vida urbana. Mesmo sem jamais reivindicar o seu status de “representante da identidade nacional”, o Jeca de Mazzaropi competiu contra a malandragem urbana de Oscarito e Grande Otelo, estabelecendo uma ligação com o imenso público do interior paulista e de muitas outras partes do país, mostrando que o mercado da indústria cinematográfica nacional, ia muito além do malandro estereotipado.

Também como Lobato, Mazzaropi foi um visionário, que estava muito à frente do seu tempo. Ele soube como poucos, driblar as dificuldades de se fazer cinema sem dinheiro, se valendo de incomparável criatividade e muito talento, para assim se eternizar como um dos maiores artistas da história do Brasil. Com o passar do tempo, o Jeca Tatu se transformou em um personagem icônico quando pensamos no Brasil e na cultura brasileira, servindo como referência para debates críticos, ou mera melancolia, de tipos que aos poucos desapareceram diante das transformações que ocorreram ao longo da nossa história.

Mais de cem anos depois de sua criação, temas abordados na simplicidade do caboclo Jeca Tatu, como a saúde pública no Brasil, ainda beiram à ficção científica. A cultura caipira de Mazzaropi segue viva, assim como as obras literárias de Lobato, que continuam inspirando e provocando debates sobre os mais variados temas.

Seja através do Jeca criado por Lobato ou do Jeca inspirado por ele e eternizado na figura de Mazzaropi, fato é que o Brasil se tornou um personagem a ser decifrado em suas muitas faces polêmicas. Nessa linha, o artigo intitulado “Mazzaropi e Lobato: Jeca Tatu ainda dá umas boas horas de conversa e pesquisa” publicado na revista da Universidade de São Paulo (USP), de autoria da doutora em ciências da comunicação, Maria Ignês Carlos Magno, nos diz acertadamente: o filme Jeca Tatu é um bom ponto de partida para alguns estudos sobre o Brasil e a nossa produção cultural. Recomendamos sua leitura!

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REFERÊNCIAS:

https://www.museumazzaropi.org.br/personagens/jeca-tatu/

https://www.revistas.usp.br/comueduc/article/view/43279/46902

** A tradução do Jeca Tatu por Mazzaropi: um caipira no descompasso do samba” – Maurício de Bragança*

Lobato no Cinema

Apesar de ficar popularmente conhecido através das histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo, reproduzidas cinco vezes na televisão brasileira, esse grande sucesso de Monteiro Lobato jamais chegou ao cinema. Na telona, com exceção do filme O Sacy, as obras do escritor, adaptadas para o cinema foram voltadas para o público adulto e a maioria baseada no livro Urupês escrito por ele em 1918, reunindo contos e textos publicados anteriormente como Velha Praga e o homônimo, que deu nome à coletânea.

Na esteira do sucesso desse clássico da literatura brasileira que deixou Lobato famoso, logo veio a primeira adaptação para o cinema nacional através do filme “Os Faroleiros”, inspirado no conto homônimo que compõe o livro Urupês. A produção estreou no dia 11 de março de 1920, senda exibida nas duas salas do cine Central e simultaneamente no cine Royal, em São Paulo, antes de partir pelo interior do estado. O sucesso foi tamanho, que ainda durante a sua exibição na capital, rendeu um artigo grande, escrito pelo jornalista Lélis Vieira, na primeira página no jornal Correio Paulistano. Essa primeira adaptação de uma história escrita por Monteiro Lobato para o cinema, foi produzida pela empresa Romeiros do progresso, e o filme dirigido por Miguel Milano e Antonio Leite, contou inclusive com a assessoria do próprio escritor na adaptação.

O filme, um drama mudo dividido em sete partes, conta a história de uma tragédia ocorrida em um farol, onde o faroleiro relata para seu novo ajudante, que havia matado seu antecessor, que segundo ele, havia enlouquecido, agindo em legítima defesa. Porém, ao deixar o farol, esse homem descobre que na verdade o crime cometido pelo faroleiro havia sido passional, pois o ajudante assassinado havia fugido com a sua esposa. Por obra do azar, sem saber, o homem havia justamente ido trabalhar com o ex-marido.

Praticamente não há informações consistentes sobre a produção, mas sabemos que João Beloise, Antônio Campos, Crispin e Manuel Araújo atuaram neste filme. Há inclusive certa incoerência nos relatos sobre a satisfação ou não de Monteiro Lobato com o filme. Enquanto no ebook “Nova história do cinema brasileiro – volume 1”, organizado por Fernão Pessoa Ramos e Sheila Schvarzman, pelas edições Sesc, há um registro afirmando que o jornal Correio Paulistano registrou a visita de Lobato ao ateliê cinematográfico e teve a melhor impressão possível com o filme já concluído, o cineasta Valêncio Xavier, em um texto escrito para o jornal Folha de São Paulo, em janeiro de 2000, afirma que o resultado não agradou em nada ao escritor. No site da Cinemateca Brasileira, maior acervo de filmes da América do Sul e membro pioneiro da Federação Internacional de Arquivo de Filmes – FIAF, ao se pesquisar sobre o filme, a informação que se tem é de que o mesmo está desaparecido. Infelizmente, ao fechamento deste texto, o site da Cinemateca Brasileira estava for a do ar, passando por um processo de renovação. Para quem tiver curiosidade de pesquisar sobre esse ou outros títulos, o site da Cinemateca é: https://www.cinemateca.org.br/

Com base nas informações encontradas exclusivamente também no acervo do site da Cinemateca Brasileira, o conto Bocatorta, o segundo conto do livro Urupês, chegou a ser adaptado para o cinema em 1924, com a produção de um longa-metragem mudo acontecendo na cidade de Campinas, no interior de São Paulo. O conto narra a história de um personagem monstruoso (o Bocatorta), que mora de favor em uma fazenda na zona rural paulista e desperta a curiosidade das pessoas em conhecer o personagem deformado que dá nome à história. Entre os mais curiosos está Eduardo, moço da cidade, noivo de Cristina, a filha do fazendeiro. por insistência do noivo eles conhecem o pobre infeliz, o que acaba desencadeando na jovem uma doença, sua morte e ainda outras consequências trágicas.

Praticamente sem qualquer outra informação disponível, a não ser aquelas que encontramos no site da Cinemateca Brasileira, tudo o que pudemos apurar em nossas pesquisas, é que o filme que seria produzido pela Apa Film, com roteiro e direção de Felipe Ricci, acabou sendo interrompido na fase de produção. O que nos deixa a beira da convicção de que Bocatorta não chegou às telas, é o fato de todas as citações que encontramos, em relação as adaptações das obras de Monteiro Lobato para o cinema, afirmarem que após Os Faroleiros, uma outra adaptação da obra lobatiana só chegou aos cinemas trinta anos depois.

Isso aconteceu em setembro de 1951, com a estréia de O Comprador de Fazendas, uma comédia baseada na livre adaptação do conto homônimo, integrante também do livro Urupês. Lançado após a morte do escritor que faleceu em 1948, a película traz algumas diferenças em relação ao conto escrito por Lobato, embora mantenha a estrutura narrativa e tenha um desfecho final diferente.

Com roteiro de Mário del Rio, Guilherme de Figueiredo e Miroel Silveira, além da direção do italiano Alberto Pieralisi, o filme, com 96 minutos de duração, conta a história de um fazendeiro que ao tentar negociar sua fazenda já decadente, hospeda um possível comprador, realizando inúmeras despesas com ele, que parte para a cidade prometendo voltar para fechar negócio. Ele não cumpre o prometido e o fazendeiro resolve então investiga-lo, descobrindo que se tratava de um vigarista acostumado a se passar por comprador de fazendas para usufruir de bons momentos. Porém o rapaz havia se apaixonado pela filha do fazendeiro. Tempos mais tarde ele ganha na loteria e decide retornar para comprar a fazenda e se casar com a moça. Porém ele é recebido pelo fazendeiro com uma surra de rabo de tatu! O pobre rapaz não consegue nem fechar negócio com a fazenda e nem casar com a jovem.

Sucesso de crítica e público, o filme produzido pela Companhia Cinematográfica Maristela e rodado em São Paulo, é considerado a adaptação mais famosa de Monteiro Lobato para o cinema. A história foi protagonizada pelo ator Procópio Ferreira e pela atriz Henriette Morineau, grandes estrelas do cinema nacional da época. O desempenho da dupla como marido e mulher, rendeu a Procópio o “Prêmio Revista A Cena Muda” de melhor ator do ano por esse trabalho. A música “Festa no Arraiá” foi composta especialmente para o filme e executada pelo autor, o rei do baião, Luiz Gonzaga. Essa adaptação também foi reconhecida como melhor filme nacional daquele ano, pela Associação Brasileira de Críticos Cinematográficos. Vinte três anos depois, em 1974, uma nova versão desse conto foi filmada pelo mesmo diretor, tendo o ator Agildo Ribeiro no papel do vigarista e Eliana Martins como a filha do fazendeiro. A segunda versão dessa adaptação pode ser assistida neste link: https://youtu.be/I-bSXtwHZeQ

O ultimo filme longa-metragem baseado na obra de Lobato e considerada a primeira produção infantil importante do cinema brasileiro, estreou na telona, dia 10 de setembro de 1953, o filme “O Saci”. A ideia de adaptar o livro (escrito em 1921) surgiu no retorno do cineasta, roteirista e produtor Rodolfo Nanni, de uma viagem a Paris para estudos sobre cinema. Porém para tirar a ideia do papel, ele precisou de autorização da editora Brasiliense, que detinha os direitos sobre os livros do escritor após a sua morte. O roteiro foi escrito inicialmente por Arthur Neves e finalizado por Nanni. As gravações aconteceram em Ribeirão Bonito, uma cidadezinha cheia de sítios, próxima a São Carlos, no interior paulista, onde toda equipe de produção e atores foi muito bem recebida pela população. O prefeito da época, inclusive, emprestou um galpão abandonado onde um estúdio foi montado com móveis antigos doados pelos próprios moradores da cidade, para compor a cenografia das cenas passadas no interior da casa do Sítio do Pica-Pau Amarelo.

Na história, Pedrinho tenta capturar um Saci em uma garrafa, seguindo as instruções do Tio Barnabé. Depois de capturado, o Saci é libertado para ajudar o menino a desfazer uma bruxaria que a Cuca jogou em Narizinho, transformando-a em pedra. Como todos sabemos, no Sítio vivem ainda Dona Benta, Tia Nastácia, Emília e outros personagens que ainda hoje encantam crianças e adultos.

Fizeram parte do elenco: Paulo Matozinho (Saci); Lívio Nanni (Pedrinho); Aristéia Paula Souza (Narizinho); Olga Maria (Emília); Maria Rosa Moreira Ribeiro (dona Benta);Benedita Rodrigues (Tia Nastácia); Otávio de Araújo (Tio Barnabé); M. Meneghelli (Cuca); Yara Trexler (Yara) e diversos meninos de Ribeirão Bonito que fizeram o papel da “sacizada”.

O filme foi um enorme sucesso comercial, ajudando a popularizar ainda mais a obra do escritor entre crianças e adultos, especialmente entre os analfabetos, que na época eram em grande número no Brasil. No ano seguinte ao seu lançamento, a produção ganhou o “Prêmio Saci”, entregue aos melhores filmes brasileiros da década de 1950 e em 1953, também conquistou o “Prêmio Governador do Estado”. Naquele  mesmo ano Arthur Neves e Hugo Nanni receberam o “Prêmio O Índio”, da revista Jornal Cinema, na categoria Melhor Produtor, e Claudio Santoro, responsável pela trilha sonora da produção, foi premiado como Melhor Compositor. Até hoje esse filme é bem lembrado e teve uma segunda estreia no seu 60º aniversário, em 2013, na última edição do Amazonas Film Festival, festival de cinema realizado na cidade de Manaus, no estado do Amazonas. Graças a tecnologia, o filme pode ser assistido online, neste link: https://youtu.be/oB-o0TlnSac

Seis anos depois do sucesso de O Saci, uma das figuras mais emblemáticas do cinema brasileiro, o ator e produtor Amácio Mazzaropi, o “caipira” que curiosamente também cresceu em Taubaté, deu vida no cinema ao icônico personagem Jeca Tatu, criado por Monteiro Lobato e tema do filme homônimo, lançado em 1959. Com roteiro e direção de Milton Amaral, esse longa-metragem é uma derivação do texto Jeca Tatuzinho, criado por Monteiro Lobato. Nele, Mazzaropi faz o papel principal, interpretando o caipira Jeca, que começa como um preguiçoso chefe de família no interior de São Paulo e termina como coronel. Ele perde seus bens por conta de intrigas armadas pelo capataz de uma fazenda vizinha, cujo filho do proprietário namora a filha do caipira. Auxiliado por um político demagogo da cidade, o caipira recupera seus bens, desmascara o capataz e enriquece. Considerado um clássico do cinema nacional, o filme, que é uma declarada homenagem de Mazzaropi ao conterrâneo Monteiro Lobato, teve em seu elenco, além próprio Mazzaropi, Geny Prado, Nicolau Guzzardi, Marlene França, Roberto Duval, Lana Bittencourt, Agnaldo Rayol, Francisco de Souza, Miriam Rony, Nena Viana, Pirolito, Celly Campello e Tony Campello.

A comédia Jeca Tatu é um filme em preto e branco, com 95 minutos, que hoje pode ser vista também no YouTube neste link: https://youtu.be/O07_cmzLvok

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REFERÊNCIAS

“Os Faroleiros”:

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/5/21/mais!/33.html

https://books.google.com.br/books?id=xLZwDwAAQBAJ&pg=PT296&lpg=PT296&dq=todos+filmes+exibidos+no+brasil+1920+os+faroleiros&source=bl&ots=nQY91gV8aM&sig=ACfU3U0gBkMI1Su3OlPFzat_2gmiFv3E8Q&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwjaruH755n8AhWBNrkGHTb8Cd84ChDoAXoECBcQAw#v=onepage&q&f=false

“O comprador de fazendas”

https://www.planocritico.com/critica-o-comprador-de-fazendas-1951/

https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Comprador_de_Fazendas

ebook: “O rural no cinema brasileiro” Célia Aparecida Ferreira Tolentino, pela editora Unesp

“O Saci”

https://www.wikiwand.com/pt/O_Saci_(filme)

“Jeca Tatu”

https://www.bbc.com/portuguese/geral-60994928

https://museumazzaropi.org.br/personagens/jeca-tatu/

Outras fontes:

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/5/21/mais!/33.html

https://www.bbc.com/portuguese/geral-60994928

https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/filmes-na-tv/40-anos-sem-mazzaropi-7-filmes-do-jeca-para-assistir-online-e-de-graca-59189

https://www.epedagogia.com.br/materialbibliotecaonine/2529Prefacios-e-Entrevistas.pdf