Entre Metafísica, Distopia e Mecenato

Lançada no final do ano passado na Alemanha, esse novo trabalho da pós-doutora pela Universidade de São Paulo, é resultado de uma audaciosa e corajosa pesquisa, com o intuito de compreender por que O choque das raças ou O presidente negro, publicado em dezembro de 1926, único romance de Monteiro Lobato, não foi editado nos Estados Unidos, como era desejo do autor, manifestado em algumas de suas cartas.

Não há qualquer exagero em afirmar que foram precisos quase cem anos depois de sua publicação original, para que pela primeira vez, O presidente negro tenha sido lido e analisado em profundidade, o que definitivamente também não esgota a obra, mas abre perspectivas para que surjam novas análises.

O choque das raças ou presidente negro de Lobato foi lançada em abril deste ano nos Estados Unidos, sob o título The Clash of the Races, com tradução de Ana Lessa- Schmidt, edição de Glenn Alan Cheney e introdução da própria Vanete Santana-Dezmann.

O LIVRO

De acordo com o Observatório Monteiro Lobato, grupo de pesquisa dedicado a investigar as acusações de racismo que recaem sobre o escritor e sua obra, O choque das raças ou O presidente negro é a primeira distopia de que se tem notícia publicada em forma de livro. Apenas para uma melhor compreensão, o termo distopia geralmente é colocado dentro de uma perspectiva contraposta ao que seria utopia, sendo a diferença entre esses termos, o ponto narrativo. Ou seja, enquanto a distopia pode ser entendida como a narrativa de um mundo caótico, a utopia faz a narrativa de um mundo perfeito.

Nesse livro a Dra. Vanete confronta a acusação de que O choque das raças ou O presidente negro, seja uma obra racista, argumentando por exemplo, que o termo eugenia é usado com quatro sentidos diferentes, sendo o darwinista apenas um deles. A título de esclarecimento, dois desses sentidos são dicionarizados; a eugenia positiva e a eugenia negativa. Os outros dois são construídos através da narrativa do livro, usados de modo metafórico e para compreende-los, é indispensável a leitura de Entre Metafísica, Distopia e Mecenato, já lançado no Brasil. Na verdade, de acordo com a pesquisadora, O choque das raças ou O presidente negro faz um alerta para os perigos da aplicação da eugenia negativa, em oposição à eugenia positiva, da qual fazem parte, por exemplo, as campanhas de vacinação.

Dezmann reforça nesse trabalho investigativo, que todas as menções feitas aos negros no livro publicado em 1926, só os enaltecem e destacam seus direitos. “A moral do livro é que devemos assumir nossas características e valorizarmos o que somos. Os negros não devem, por exemplo, mudar sua aparência para serem aceitos”, explica a autora. Ela destaca ainda, que o livro contém um verdadeiro tratado, até agora ignorado pelos chamados “especialistas” em Monteiro Lobato e sua obra, sobre o que é o universo e quem é Deus, antecipando em 40 anos a Teoria das Cordas, um modelo físico que tenta unificar a teoria da relatividade e a mecânica quântica. “Tudo isso só nos leva a concluir que há sobejos motivos para que este livro seja celebrado. É por isso que sua publicação em inglês que saiu recentemente nos Estados Unidos, é motivo de grande alegria e a realização, ainda que tardia, de um sonho de Lobato. O agradecimento especial vai para a Fundação Biblioteca Nacional, que financiou o projeto por meio de seu programa de Apoio à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior”, conclui Vanete.

Entre Metafísica, Distopia e Mecenato, inclui, além da análise do Profa. Vanete, a versão completa do romance de ficção original escrito por Monteiro Lobato, com ortografia e pontuação atualizadas.

SOBRE A AUTORA

Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora, corresponsável pelas “Jornadas Monteiro Lobato”, que acontecem na USP em cooperação com outras instituições e pelos “Encontros com Lobato”, realizados mensalmente também na USP.

É uma das idealizadoras do grupo Observatório Monteiro Lobato, além de autora de vários livros e artigos como “Vozes Lobatianas em diálogo: possibilidades e desafios de estudar Monteiro Lobato” e “Lobato e os carrascos civilizados: construção de brasilidade via reescritura de Warhaftige Historia, de Hans Staden”.

Graduada em Letras, fez mestrado e doutorado em Teorias de Tradução na UNICAMP, com estágio de pesquisa na Universidade Livre de Berlim.

Pós-doutorada em Estudos da Tradução na USP, com estágio de pesquisa no Goethe- Museum de Düsseldorf.

Como professora de Tradução na Universidade de Mainz, na Alemanha, desenvolveu entre 2019 e 2020 o projeto de tradução do livro Reinações de Narizinho, para a língua alemã.

Além de ministrar aulas como professora de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira na Volkshochschule, a professora Vanete desenvolveu, em caráter voluntário, projetos voltados para a disseminação da cultura brasileira.

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Referências:

** Entrevista com a professora Vanete Santana-Dezmann e consulta ao site Observatório Monteiro Lobato.

https://www.observatoriolobato.org/

Monteiro Lobato em Rede: para entender e compreender um brasileiro que viveu a frente de seu tempo

Formado por pesquisadores da obra do escritor taubateano, o grupo de pesquisa “Monteiro Lobato em Rede” existe há mais de 20 anos com diversos outros nomes como “Projeto Memoria de Leitura” e depois “Monteiro Lobato e outros Modernismos Brasileiros”. Boa parte dos integrantes do grupo se conheceu e se vinculou a pesquisa no final dos anos 1990, quando eram orientandos de mestrado ou doutorado da professora Marisa Lajolo mas outros membros ingressaram depois. O grupo foi crescendo, se fortalecendo e hoje o gruo “Monteiro Lobato em Rede é composto por professores e pesquisadores de várias universidades de norte a sul do país formando uma rede virtual de pesquisas lobateanas.

Em 2021, o grupo se formalizou se registrando no diretório de grupos de pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Fazem parte do grupo, como membros oficiais, as professoras Marisa Lajolo, do Mackenzie e da Unicamp;  Milena Martins, da UFPR; Cilza Bignotto, da UFSCar; Tâmara Abreu, da UFRN; Patrícia Romano, da Unifesspa; Raquel Afonso da Silva, da IFB; Raquel Endalécio Martins, da UFRR; o professor Emerson Tin, da Facamp; e os pesquisadores independentes Luís Camargo e Kátia Chiaradia e tambem alunos dos professores participantes, que desenvolvem projetos de pesquisa sobre a obra de Lobato. Há também os membros honorários, aqueles que não tem vínculo com universidades, mas que colaboram intensamente com o grupo, como é o caso do designer Magno Silveira e do biógrafo Vladimir Sacchetta.

Entre os livros já publicados pelo grupo “Lobato em Rede”, gostaríamos de destacar o livro Monteiro Lobato livro a livro- obra infantil, organizado por Marisa Lajolo e João Ceccantini em 2008. Este livro publicado pela editora Unesp e Imprensa Oficial, recebeu em 2009, dois prêmios Jabuti: o de melhor livro de crítica literária e também de melhor livro de não ficção do ano. Cada capítulo analisa uma obra infantil do escritor, e leva em consideração a história editorial da obra. Já em 2014, a professora Marisa Lajolo organizou o Monteiro Lobato livro a livro – obra adulta publicada pela editora Unesp. Ambas as publicações se tornaram referência para pesquisadores da obra do escritor.


De acordo com a professora Milena Martins, líder do grupo, cada membro do grupo desenvolve e orienta pesquisas específicas sobre Monteiro Lobato, sua obra infantil e sua obra geral, sobre as relações artísticas ou intelectuais entre o escritor e figuras do seu tempo, obras publicadas pelas editoras de Lobato. Esses são alguns temas, apenas para ilustrar, uma vez que a complexidade do universo lobatiano abre um verdadeiro leque de possibilidades para estudos dos mais variados temas.

Milena contou ainda, que o grupo também considera a leitura da obra nos dias atuais. O modo como os leitores de hoje, leem e interpretam uma obra que tem cem anos de vida, e que já foi publicada em tantos formatos distintos, não só em livro, mas também em audiovisual. Esses diferentes suportes promovem diferentes leituras. “O gênero das obras também é parte incontornável das análises. Obras ficcionais precisam ser analisadas como tal, compreendendo os recursos usados, a tradição, as intenções, a ideologia de um tempo. Tudo isso entra em nossas análises”, explicando como o grupo lida com as distorções relativas à obra de Lobato, que têm provocado inclusive atitudes discriminatórias por parte de algumas pessoas. “De modo geral, posso simplificar dizendo que analisamos a obra em relação estreita com seu tempo, compreendendo a literatura e as relações sociais no contexto dos anos 1910-1940, evidenciando os vínculos entre a obra e a sociedade que a produziu, ou entre a obra e os usos literários e linguísticos do seu tempo.”

O trabalho de grupos de pesquisa como o Monteiro Lobato em Rede tem sido fundamental para quebrar essas objeções criadas recentemente, produzindo uma maior compreensão da obra de Monteiro Lobato e do seu tempo, através de um estudo aprofundado e contextualizado sobre o autor. Essa, aliás, é a preciosa colaboração do grupo, que nos ajuda, através do seu trabalho, a conhecer e compreender o universo lobatiano, sendo imprescindível na formação de novos leitores.

Recentemente, o grupo publicou dois livros, intitulados Lobato na Escola (Livros 1 e 2, editora Paulus, 2022) organizados pela professora Milena Martins, em coautoria com Luís Camargo e Kátia Chiaradia. “São roteiros de leitura para a obra infantil e a obra adulta do escritor. Em diálogo com a legislação educacional mais recente, a Base Nacional Comum Curricular, nós apresentamos análises minuciosas de obras infantis e de contos do Lobato, e sugerimos atividades a serem realizadas para uma melhor formação leitora dos estudantes”, explica Milena. Esses livros são um excelente material de apoio a professores e a estudantes de Letras e Pedagogia, mas também servem para leitores que tenham filhos e que se preocupem com a formação leitora de suas crianças, ou que queiram se aprofundar na leitura dos contos do escritor. Esse diálogo com leituras contemporâneas, o envolvimento com a formação de novos leitores, é um dos pontos fortes do grupo Monteiro Lobato em Rede, que tem em seus membros, pessoas que se envolvem com Educação e interessados em ampliar o acesso a bens culturais, promovendo uma compreensão mais complexa da nossa sociedade e da nossa cultura.

Há outros livros muito importantes publicados pelo grupo, como Lendo e escrevendo Lobato (editora Autêntica), de 1999, organizado por Eliane Marta Teixeira Lopes e Maria Cristina Soares de Gouvêa; e a biografia Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida, da Marisa Lajolo, também publicado pela editora Moderna, em 2000 alem do livro Quando o carteiro Chegou – livro organizado pela professora Marisa Lajolo e Emerson Tin onde temos uma coletânea de cartões-postais de Lobato para Purezinha. Neste livro há muitas relações entre texto e imagem que parecem nascer nesses postais e se desenvolver em textos e em aquarelas de Lobato. Figuras de autor, Figuras de editor, de Cilza Bignotto, publicada pela Unesp, em 2018, retrata o Lobato editor, mas fala também sobre a história do livro brasileiro. É uma publicação importantíssima para a história da literatura brasileira, por compreender os editores como agentes centrais do sistema literário. Já em 2020, Patrícia Romano publicou Dona Benta: Uma Mediadora no Mundo da Leitura (Editora Appris) e este ano, Magno Silveira acabou de publicar uma edição fac-similar de O Sacy, de 1921, com paratextos de Marisa Lajolo, Cilza Bignotto, Vladimir Sacchetta e do próprio Magno. Além de ser um livro de altíssima qualidade, ele ainda inaugura o trabalho da editora Graphien, um acontecimento editorial de um visionário (Magno) sobre outro visionário (Lobato).

Há outros tantos livros e inúmeros artigos em revistas acadêmicas publicados pelo grupo que são de um valor imensurável, não apenas para entender e compreender esse brasileiro que viveu à frente de seu tempo, mas para enriquecer ainda mais a literatura brasileira.

Para finalizar este artigo, antecipamos que neste momento o grupo Lobato em rede está preparando um livro com análises de alguns contos escolhidos de Monteiro Lobato. Tendo como público-alvo estudantes de graduação, o livro ainda não tem data para sair, mas pelo que pudemos apurar está sendo gestado com todo o carinho.

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Referências:

**Texto produzido a partir de entrevista respondida pela professora Milena Martins.